[XYZ]
[X]
passa-se a pé. a pé junto. junto ao carteiro. o carteiro para ali concentrado no ofício. frente às ranhuras negras. bocas de correio. depósitos das mãos caligrafadas. passa-se a pé junto ao carteiro. assim semelhante. semelhante a um plano cinematográfico. uma câmara em rotação dentro de um veículo. movimento lento. olho de peixe. e observa-se o carteiro e merda! merda! que ofício! um ninguém distribuindo cartas de alguém para outro alguém. deve sentir. sentir talvez. talvez uma curiosidade atroz. angústia forte. a latejar nas têmporas. como aquele sangue espesso subindo todo de repente à curiosidade. e as mãos palpitam. o corpo palpita. e o carteiro pensa merda! merda! nunca recebo cartas. nunca. e aqui estou a oferecê-las a outros. água. luz. tribunais. ministérios. bancos. tudo bem. mas depois há estas escritas à mão. letra miudinha.
e então opera-se a câmara. um grande plano e repara-se. repara-se no carteiro laborando. no cartei. cartei! e esboças agora um sorriso bem cínico: ah pois! com que então! apanhei-te! pensas.
não penses. observa antes: a moralidade descastrando-se. a solidão a chicoteá-lo. o carteiro em grande plano. focadíssimo. abrindo uma carta. as mãos palpitam. o corpo palpita. remetente: postdamer platz. berlim.
[Y]
destinatário:
as conversas às vezes dão para isto. conhece-se um homem na rua. os seus oitenta e tal anos ainda caminham. troca-se diálogo cabeça dentro. troca-se diálogo e reflete-se. se assim não fosse talvez te escrevesse acerca do tempo. carta meteorologista. como tenho passado por cá. olá. está tudo bem. mas não. prefiro este encontro. mesmo sabendo do seu desinteresse. do seu desinteresse para ti.
então: segundo me pareceu este homem tritura-se na calçada. veste sempre o mesmo. memória. vive nesta cidade desde que conhece o conceito de cidade. e vai assistindo. assistindo à desconstrução. às gruas derrubando pedra e madeira. dinossauros em fase carnívora. pêndulos meteóricos. implosão e explosão. máquinas incisivas. lâminas centrífugas desbastando paralelos. paralelas ao solo. e os vestígios em sangue. a amputação dos edifícios. ali deixados como cadáveres. deixados para não se esquecer. os restos envergonhados por terem sido. expostos. as paredes já coaguladas. o interior dos quarteirões desfeito. desfeito. a cirurgia das avenidas. cerzindo. cerzindo.
e ainda me falou do lugar onde a infância o habitou. aí. aí fundiu-se um novo lugar. mastigando o anterior. as décadas devoram os espaços. a reciclagem impõe-se. a infância vai desaparecendo em passos leves.
e este homem ainda caminhando. cidade cima. cidade baixo. e percebo que cada imagem que guardava. os locais seguros. vão desaparecendo também. e penso no seu cérebro. já velho. onde dia após dia outra árvore foge. deixando a recordação como raiz. mas. mas as recordações são tantas e aparecem em tantas vozes. as recordações espezinham-se. invadem-se. sobrepõem-se e já nada é nítido. e mais um dia. e menos uma imagem. menos um espaço. outra árvore cerebral em decomposição. apagando-se velozmente. e os ramos a regredir. a inverter o sentido. o sentido construído durante uma vida. o sentido. o sentido. esse sentido já não. e este homem cujo corpo é a cidade. desconstruindo. desconstruindo. este homem. vértebras em ruas. tronco de água. a cirurgia das avenidas. vértebras a estilhaçar. fracturadas. músculos de alcatrão e hipertrofias e os tendões como cabos de fibra óptica e as omoplatas verdes e o seu grande pulmão respirando pelas condutas de ar: artérias dilatando-se num emaranhado de raízes tubos canais subterrâneos. e ainda a topografia epidérmica. epidérmica. a pele em ruínas. a pele a arder já fóssil. a fotossíntese dos arranha-céus. e este homem mais um dia. este homem mais um dia. menos uma imagem. e largo-o porque já não aguento. e vejo-o caminhar. já longe. e é nítido. cristalino. o corpo envelhece. a cidade entra em mutação. a memória dilui-se. os ramos invertem o sentido. rápidos. rápidos. e vão chegando a um centro inicial. um centro nulo donde se partiu. donde se nasceu. um centro cada vez mais microscópico. um centro de âmbar claro.
talvez o homem caia pelo caminho. a memória vazia. o corpo oco. e saiba que o branco infinito o vem buscar.
o remetente.
[Z]
berlim. entre as 7 e 8 da manhã. finalmente cheguei. mas que corrupio. é domingo. e só se vêem homens apertados e fatos e malas de mão correndo para o metro. é domingo. é domingo. mas de resto as avenidas estão vazias. passo por um prédio. inscreve no topo bonjour tristesse. parece saudar-me. mas é realmente triste. ainda não compreendi. desde que cheguei que ouço vozes. gritos íntimos. um som peganhento não me larga. há aqui uma linha infindável que grava o chão. separa-o. um sulco de ossos. separa-o. mas também não sei porquê. encosto-me a um muro rascunhado. tem piada o que esta malta faz por cá. os carros para este lado são mais velhos. sinto o leste a chamar-me. as varandas das casas sujam a verticalidade. na outra parte da cidade é tudo luxo. tudo novo. estes alemães trabalham porra! o comboio para ali com uma disfunção qualquer. avariado em dortmund. no interior da madrugada. hora e tal de paragem. e ainda assim chegou à hora prevista. tudo aqui me parece pontual. meticuloso. tudo se move metodicamente. até os objectos são rigorosos.
deságuo numa praça enorme. e lembro-me de quando era novo. digo lembro-me apenas porque sinto. sinto um terrível sufoco. um cinto à volta do tórax. como quando andava maltrapilho e guarda-redes pelas arenas de futebol do meu bairro. certo dia um macho qualquer disparou-me um torpedo tal. tal que me fuzilou a barriga e o peito. estive minutos. estive minutos sem respirar. de braços enrolados à cinta. bom. mas. mas não importa isso. apenas porque sinto o mesmo ao desaguar nesta praça. depois de tanto caminhar juntei outra perna às minhas. a debilidade. fiquei com tonturas todo o dia em volta desta cidade. um espelho de labirintos. entrei numa sala altíssima. encerraram-me e só ouvia o barulho do exterior por uma fresta oblonga de luz. perturbava a vista. uma sala sem saída. insondável. hedionda. estes alemães são estranhos. no entanto fascinam-me tanto como a cidade. o seu crepitar latente. há mesmo algo a fervilhar cá dentro. parece-me. mais uns anos e o mundo começa a prestar vassalagem a berlim.
como disse: deságuo numa praça enorme. e começo a perceber melhor a carta que abri.
[O]
diz-se que a origem é o centro. diz-se que é lá que se dá a intersecção. a intersecção dos planos. dos 3 planos. na origem. cruzamento de qualquer coisa. solução. desvendar o disperso. diz-se referencial e depois lá origem lá centro lá intersecção. diz-se. diz-se.
não sei. cada olhar é divergente. cada leitura é um olhar.
e.e.
sábado, dezembro 25, 2004
quarta-feira, dezembro 22, 2004
Reflexão 4
Acordei por volta das onze horas com o Frio deitado ao meu lado, abraçando-me. Deixei-me ficar um pouco na cama, pois não tive coragem para enfrentar o mundo gelado. Até que ouvi barulho na casa de banho. Isto surpreendeu-me: a minha mãe já tinha ido para casa da minha avó, o meu irmão estava concerteza a dormir... quem seria?
Levantei-me e fui investigar. Era o meu irmão. A sua expressão de sono era assustadora... estava bêbado, provavelmente. Eu também ainda não estava bem ciente da realidade que me rodeava. Pediu-me para o acordar às cinco da tarde, pois ia-se deitar entretanto. Acedi ao seu pedido.
Tomei banho, vesti-me e comi qualquer coisa, sempre acompanhado pelo Silêncio. A casa parecia um túmulo, com uma total ausência de actividade... tudo parecia adormecido.
Ao sair à rua, deparei-me com muito movimento, alegria, cor e calor humano. Mas os meus dois amigos não me largaram por um único segundo. E à medida que caminhávamos, um terceiro companheiro juntou-se a nós. Era a Tristeza. Sorridente como sempre, desejou-me "Boas Festas". Retribuí-lhe o sorriso gélido.
Continuei o meu caminho. Sempre que olhava por cima do ombro, via os meus três companheiros, silenciosos e taciturnos. Até que encontrei outros amigos, os chamados "amigos de carne e osso", os verdadeiros. Sentado no café a conversar com eles, contudo, não pude deixar de pôr em causa se o Marto, o Mota e o Pastel seriam mais reais do que o Frio, o Silêncio e a Tristeza...
Deixei-me embrenhar por estes pensamentos, até que ela apareceu: a Dor. Estava bonita, como sempre. Trocámos palavras, prendas e beijos. Ela, ao menos, sei que nunca me deixará. É, sem dúvida, a minha melhor companheira; é "a" companheira.
Despedi-me de todos, prometendo que não morreria hoje. De volta a casa, encontrei o meu irmão a berrar contra tudo e contra todos, mas sobretudo contra o Natal. Creio que a Revolta e o Arrependimento andam a visitá-lo cada vez mais frequentemente.
É assim, o Natal. É quando todos nos fazem uma visita... sobretudo, visitam-nos aqueles que nós mais queremos esquecer.
Cristóvão Figueiredo
Acordei por volta das onze horas com o Frio deitado ao meu lado, abraçando-me. Deixei-me ficar um pouco na cama, pois não tive coragem para enfrentar o mundo gelado. Até que ouvi barulho na casa de banho. Isto surpreendeu-me: a minha mãe já tinha ido para casa da minha avó, o meu irmão estava concerteza a dormir... quem seria?
Levantei-me e fui investigar. Era o meu irmão. A sua expressão de sono era assustadora... estava bêbado, provavelmente. Eu também ainda não estava bem ciente da realidade que me rodeava. Pediu-me para o acordar às cinco da tarde, pois ia-se deitar entretanto. Acedi ao seu pedido.
Tomei banho, vesti-me e comi qualquer coisa, sempre acompanhado pelo Silêncio. A casa parecia um túmulo, com uma total ausência de actividade... tudo parecia adormecido.
Ao sair à rua, deparei-me com muito movimento, alegria, cor e calor humano. Mas os meus dois amigos não me largaram por um único segundo. E à medida que caminhávamos, um terceiro companheiro juntou-se a nós. Era a Tristeza. Sorridente como sempre, desejou-me "Boas Festas". Retribuí-lhe o sorriso gélido.
Continuei o meu caminho. Sempre que olhava por cima do ombro, via os meus três companheiros, silenciosos e taciturnos. Até que encontrei outros amigos, os chamados "amigos de carne e osso", os verdadeiros. Sentado no café a conversar com eles, contudo, não pude deixar de pôr em causa se o Marto, o Mota e o Pastel seriam mais reais do que o Frio, o Silêncio e a Tristeza...
Deixei-me embrenhar por estes pensamentos, até que ela apareceu: a Dor. Estava bonita, como sempre. Trocámos palavras, prendas e beijos. Ela, ao menos, sei que nunca me deixará. É, sem dúvida, a minha melhor companheira; é "a" companheira.
Despedi-me de todos, prometendo que não morreria hoje. De volta a casa, encontrei o meu irmão a berrar contra tudo e contra todos, mas sobretudo contra o Natal. Creio que a Revolta e o Arrependimento andam a visitá-lo cada vez mais frequentemente.
É assim, o Natal. É quando todos nos fazem uma visita... sobretudo, visitam-nos aqueles que nós mais queremos esquecer.
Cristóvão Figueiredo
quinta-feira, dezembro 16, 2004
Tertúlia
Em dia cinzento, de ar carrancudo e magoado, desenvolveu-se uma tertúlia em plena Biblioteca Municipal. Como sempre acontece quando há politiquices pelo meio, a tertúlia rapidamente se metamorfizou num monstro disforme e kafkiano com cara de debate. De um lado das trincheiras, os Vermelhos. Do outro, os Ignorantes. Havia ainda alguns leitores bucólicos e outros tantos estudantes absortos que tentavam sobreviver à chacina, mas em todos os conflitos há vítimas civis inocentes e não foi atrás dos livros e cadernos que encontraram abrigo.
Os Vermelhos atacavam com artilharia pesada: Marx dizia que “numa sociedade burguesa o capital é independente e tem individualidade, mas a pessoa vive dependente e sem individualidade”, ao passo que Fernando Pessoa tinha dito uma vez que “a diferença entre um homem e um homem grande é superior à diferença entre um homem e um macaco.” Já um estudo revelava que “80% das riquezas mundiais estavam distribuídas por 25% da população mundial, sobretudo na Europa e Estados Unidos.” Esses mesmos Estados Unidos cuja agência CIA, segundo estava provado, “tem 4 planos diferentes para invadir Cuba.”
Os Ignorantes, indefesos, tentavam desviar-se como podiam das frases atiradas certeira e furiosamente. Mas os argumentos eram demasiado potentes. Uns provocavam morte imediata ao rebentar, outros deixavam os soldados desfigurados e mutilados.
Trotsky, 11 de Setembro, Hitler, Engels, a Consciência de Massas, Che Guevara, União Soviética, Fascismo, Nietzsche, a Guerra Fria, Lenine, a República Popular da China, o preço das batatas e as taxas da PT, Álvaro Cunhal e Santana Lopes, tudo voava indiscriminadamente pelo campo de batalha. Os Vermelhos entusiasmavam-se e disparavam em todas as direcções, metralhando tudo aquilo que se mexesse. Mas gradualmente as vozes baixaram de tom, as palavras perderam agressividade e os discursos ficaram menos fluentes. O resultado da batalha já não poderia inverter-se.
Foi então que saiu da boca daquele que parecia ser o Mais Afoito o seguinte:
“Isto é tudo muito simples, meus amigos. O povo, por si só, é a força motriz que faz História.”
Da segurança dos seus livros, um pensamento atravessou o cérebro de um jovem leitor. Não resistiu, e correu o risco de se dirigir ao General. Inocentemente, perguntou-lhe:
- Isso é o que tu pensas, ou foi aquilo que leste?
Sem hesitações, o Presidente retorquiu asperamente:
- Isto é aquilo que eu sei, defendo e justifico. Queres discutir isso?
O leitor não teve capacidade de se desviar. A forma veemente e pronta com que o Ditador respondeu funcionou como um tiro no peito. Deixou-se cair, sem qualquer esperança de sobreviver. O sangue corria abundantemente e inundava o chão da sala, juntando-se aos restos de vida das outras vítimas. Talvez devido a este novo triunfo do seu Deus, os Vermelhos redobraram as suas energias e voltaram à carga, sem dó nem piedade.
Enquanto o abraço frio da morte o envolvia, o leitor pode ouvi-los a defender e justificar aquilo que sabiam, com uma fé inabalável. Mas morreu sem saber o que é que eles pensavam.
Cristóvão Figueiredo
Em dia cinzento, de ar carrancudo e magoado, desenvolveu-se uma tertúlia em plena Biblioteca Municipal. Como sempre acontece quando há politiquices pelo meio, a tertúlia rapidamente se metamorfizou num monstro disforme e kafkiano com cara de debate. De um lado das trincheiras, os Vermelhos. Do outro, os Ignorantes. Havia ainda alguns leitores bucólicos e outros tantos estudantes absortos que tentavam sobreviver à chacina, mas em todos os conflitos há vítimas civis inocentes e não foi atrás dos livros e cadernos que encontraram abrigo.
Os Vermelhos atacavam com artilharia pesada: Marx dizia que “numa sociedade burguesa o capital é independente e tem individualidade, mas a pessoa vive dependente e sem individualidade”, ao passo que Fernando Pessoa tinha dito uma vez que “a diferença entre um homem e um homem grande é superior à diferença entre um homem e um macaco.” Já um estudo revelava que “80% das riquezas mundiais estavam distribuídas por 25% da população mundial, sobretudo na Europa e Estados Unidos.” Esses mesmos Estados Unidos cuja agência CIA, segundo estava provado, “tem 4 planos diferentes para invadir Cuba.”
Os Ignorantes, indefesos, tentavam desviar-se como podiam das frases atiradas certeira e furiosamente. Mas os argumentos eram demasiado potentes. Uns provocavam morte imediata ao rebentar, outros deixavam os soldados desfigurados e mutilados.
Trotsky, 11 de Setembro, Hitler, Engels, a Consciência de Massas, Che Guevara, União Soviética, Fascismo, Nietzsche, a Guerra Fria, Lenine, a República Popular da China, o preço das batatas e as taxas da PT, Álvaro Cunhal e Santana Lopes, tudo voava indiscriminadamente pelo campo de batalha. Os Vermelhos entusiasmavam-se e disparavam em todas as direcções, metralhando tudo aquilo que se mexesse. Mas gradualmente as vozes baixaram de tom, as palavras perderam agressividade e os discursos ficaram menos fluentes. O resultado da batalha já não poderia inverter-se.
Foi então que saiu da boca daquele que parecia ser o Mais Afoito o seguinte:
“Isto é tudo muito simples, meus amigos. O povo, por si só, é a força motriz que faz História.”
Da segurança dos seus livros, um pensamento atravessou o cérebro de um jovem leitor. Não resistiu, e correu o risco de se dirigir ao General. Inocentemente, perguntou-lhe:
- Isso é o que tu pensas, ou foi aquilo que leste?
Sem hesitações, o Presidente retorquiu asperamente:
- Isto é aquilo que eu sei, defendo e justifico. Queres discutir isso?
O leitor não teve capacidade de se desviar. A forma veemente e pronta com que o Ditador respondeu funcionou como um tiro no peito. Deixou-se cair, sem qualquer esperança de sobreviver. O sangue corria abundantemente e inundava o chão da sala, juntando-se aos restos de vida das outras vítimas. Talvez devido a este novo triunfo do seu Deus, os Vermelhos redobraram as suas energias e voltaram à carga, sem dó nem piedade.
Enquanto o abraço frio da morte o envolvia, o leitor pode ouvi-los a defender e justificar aquilo que sabiam, com uma fé inabalável. Mas morreu sem saber o que é que eles pensavam.
Cristóvão Figueiredo
quinta-feira, dezembro 09, 2004
esconderijo
Do teu esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói,
sai dele apenas quando puderes dar algo aos outros.
Antes, é cedo demais, muito depois, é excessivo egoísmo.
Mas mesmo esta convicção não ajuda, não sei
Como viver, não sei o que é mais moral, mais ético,
Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê?
Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo.
Gonçalo M. Tavares
Do teu esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói,
sai dele apenas quando puderes dar algo aos outros.
Antes, é cedo demais, muito depois, é excessivo egoísmo.
Mas mesmo esta convicção não ajuda, não sei
Como viver, não sei o que é mais moral, mais ético,
Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê?
Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo.
Gonçalo M. Tavares
terça-feira, dezembro 07, 2004
Caros Amigos ,
Vimos através deste meio fazer-lhes o convite para o Festival de Poesia, organizado pela Corpos Editora que decorrerá nos dias 10, 11, 17 e 18 de Dezembro no bar parke em Francelos,V.N.Gaia, sempre a partir das 22h30m.
A melhor forma de chegar ao parke é a seguinte:
- seguir na rua principal junto às praias de gaia, no sentido norte-sul; em francelos, nos primeiros semáforos a seguir ao bar palhota, virar à esquerda e novamente à esquerda.
A Programação do evento será a seguinte:
Dia 10 de Dezembro ( 6ª Feira), a partir das 22H30m:
- Lançamento do Livro “Mãos” de Francisco Félix, Ana Rosa e Patricia Pereira.
- Lançamento do livro “O gesto do vento” De Pedro Afonso.
- Apresentação da segunda edição do livro ”Degenerescência” de Sérgio Paraty.
- Apresentação da segunda edição do livro “Em Carne Viva” de Aires Ferreira.
- Espectáculo Poético De Ex-Ricardo dePinho Teixeira e Flanela.
- Espectáculo Spokenword de Aires Ferreira.
- Projecção Video de Sérgio Paraty e Ivo Reis.
Dia 11 de Dezembro (Sábado), a partir das 22H30m:
- Lançamento do Livro “Letras para consumo” de Paulo Silva.
- Lançamento do Livro “Ainda não sei” de Hugo Amaral.
- Lançamento do livro “Tantos Cruzamentos” de David Fernandes.
- Lançamento do Livro “Arcanun Mortis” de Eugénia Bento.
- Espectáculo Poético de Ex-Ricardo dePinho Teixeira e Flanela.
Dia 17 de Dezembro (6ª Feira), a partir das 22h30m:
- Lançamento do Livro “Figura” de germano d´oliveira nunes.
- Apresentação da segunda edição do livro “Lua Polaroid” de Filipa Leal.
- Lançamento do Livro “Embriogénese”de Vitor Carvalhais.
- Lançamento do Livro “Foge-me a cor dos olhos correndo para o horizonte” de Pedro Ferreira.
- Espectáculo Poético de Ex-Ricardo dePinho Teixeira e Flanela.
- Performance Teatral por Filipa Leal e germano d´oliveira nunes.
Dia 18 de dezembro (Sábado), a partir das 22h30m:
- Apresentação da segunda edição do Livro “O Eu dos Outros e o meu Eu” de Maria Beatriz.
- Lançamento do Livro “Off” de Lara Mendes Marques.
- Lançamento do Livro “Tango de folhas tristes” de Marisa Silva.
- Espectáculo Poético de Ex-Ricardo dePinho Teixeira e Flanela.
- Espectáculo Poético e Musical por: Maria Beatriz, Juca, Fatucha e José Carlos Tinoco.
- Projecção video de Lara Mendes Marques.
Junto com o evento irá decorrer uma Feira do Livro.
Durante todo o evento estarão patentes exposições de Fotografia e Pintura.
Atenciosamente,
Adriana Pereira e Ex-Ricardo dePinho Teixeira
Vimos através deste meio fazer-lhes o convite para o Festival de Poesia, organizado pela Corpos Editora que decorrerá nos dias 10, 11, 17 e 18 de Dezembro no bar parke em Francelos,V.N.Gaia, sempre a partir das 22h30m.
A melhor forma de chegar ao parke é a seguinte:
- seguir na rua principal junto às praias de gaia, no sentido norte-sul; em francelos, nos primeiros semáforos a seguir ao bar palhota, virar à esquerda e novamente à esquerda.
A Programação do evento será a seguinte:
Dia 10 de Dezembro ( 6ª Feira), a partir das 22H30m:
- Lançamento do Livro “Mãos” de Francisco Félix, Ana Rosa e Patricia Pereira.
- Lançamento do livro “O gesto do vento” De Pedro Afonso.
- Apresentação da segunda edição do livro ”Degenerescência” de Sérgio Paraty.
- Apresentação da segunda edição do livro “Em Carne Viva” de Aires Ferreira.
- Espectáculo Poético De Ex-Ricardo dePinho Teixeira e Flanela.
- Espectáculo Spokenword de Aires Ferreira.
- Projecção Video de Sérgio Paraty e Ivo Reis.
Dia 11 de Dezembro (Sábado), a partir das 22H30m:
- Lançamento do Livro “Letras para consumo” de Paulo Silva.
- Lançamento do Livro “Ainda não sei” de Hugo Amaral.
- Lançamento do livro “Tantos Cruzamentos” de David Fernandes.
- Lançamento do Livro “Arcanun Mortis” de Eugénia Bento.
- Espectáculo Poético de Ex-Ricardo dePinho Teixeira e Flanela.
Dia 17 de Dezembro (6ª Feira), a partir das 22h30m:
- Lançamento do Livro “Figura” de germano d´oliveira nunes.
- Apresentação da segunda edição do livro “Lua Polaroid” de Filipa Leal.
- Lançamento do Livro “Embriogénese”de Vitor Carvalhais.
- Lançamento do Livro “Foge-me a cor dos olhos correndo para o horizonte” de Pedro Ferreira.
- Espectáculo Poético de Ex-Ricardo dePinho Teixeira e Flanela.
- Performance Teatral por Filipa Leal e germano d´oliveira nunes.
Dia 18 de dezembro (Sábado), a partir das 22h30m:
- Apresentação da segunda edição do Livro “O Eu dos Outros e o meu Eu” de Maria Beatriz.
- Lançamento do Livro “Off” de Lara Mendes Marques.
- Lançamento do Livro “Tango de folhas tristes” de Marisa Silva.
- Espectáculo Poético de Ex-Ricardo dePinho Teixeira e Flanela.
- Espectáculo Poético e Musical por: Maria Beatriz, Juca, Fatucha e José Carlos Tinoco.
- Projecção video de Lara Mendes Marques.
Junto com o evento irá decorrer uma Feira do Livro.
Durante todo o evento estarão patentes exposições de Fotografia e Pintura.
Atenciosamente,
Adriana Pereira e Ex-Ricardo dePinho Teixeira
segunda-feira, dezembro 06, 2004
pensamentos desconexos (agradeço à sónia pela pequena fábula)
sou uma laranja, tenho medo que me comam e então tranco-me no quarto
para fugir aos canibais, que são todos, todos. se as coisas que voam
tivessem menstruação, menstruação, estávamos lixados. enganei-me outra vez, mamã, votei no PSD. assim vou sendo uma laranja trancado num quarto e uso fatiota especial para me proteger da menstruação dos
pássaros, pássaros. ai os canibais! vota PSD!
Post Scriptum: às vezes ando de cartola, mas não sou capitalista. o
resto, minha senhora, é segredo de justiça... vai uma laranjinha?
bruno r. almeida
sou uma laranja, tenho medo que me comam e então tranco-me no quarto
para fugir aos canibais, que são todos, todos. se as coisas que voam
tivessem menstruação, menstruação, estávamos lixados. enganei-me outra vez, mamã, votei no PSD. assim vou sendo uma laranja trancado num quarto e uso fatiota especial para me proteger da menstruação dos
pássaros, pássaros. ai os canibais! vota PSD!
Post Scriptum: às vezes ando de cartola, mas não sou capitalista. o
resto, minha senhora, é segredo de justiça... vai uma laranjinha?
bruno r. almeida
quinta-feira, dezembro 02, 2004
panteísta
ria-se e ria-se. estridente. batia palmas e ria-se para as aves abertas. junto ao tejo o eco parecia aumentar. ria-se e ria-se e falava para as aves abertas. talvez se entendessem.
seguiu ao encontro dum pinheiro manso. cambaleante. as mãos como que se elevaram até à caruma esverdeada. cheiraram longo tempo. cheiraram aquele incenso e da sua mímica percebia-se que afagavam os braços da árvore.
noutro pinheiro ao lado estancou. depois abraçou o tronco. abraçou com força. e a cada estímulo da natureza esboçava um espanto de criança. caminhou entrelaçado pelas árvores. as aves. as aves e as árvores. olhou então para um senhor ali perto que se fascinava num jornal e pediu um cigarro. recebeu um abanão de cabeça. pediu muita desculpa por incomodar e libertou estas palavras:
polícia... polícia chegou... pé mim... apalpou apalpou apalpou... tenho nada... (e cabisbaixava para os pés negros de surro)... estive preso dois meses... (e entoava um sotaque brasileiro)... agora saí... mas tenho arranjar emprego... sabe?... ali esquerda... circo tché... sabe?... ali esquerda... circo tché... vou lá tentar emprego... senão estou fodido!
e fugiu por entre a caruma. trepou pela casca do pinheiro e desapareceu.
e.e.
ria-se e ria-se. estridente. batia palmas e ria-se para as aves abertas. junto ao tejo o eco parecia aumentar. ria-se e ria-se e falava para as aves abertas. talvez se entendessem.
seguiu ao encontro dum pinheiro manso. cambaleante. as mãos como que se elevaram até à caruma esverdeada. cheiraram longo tempo. cheiraram aquele incenso e da sua mímica percebia-se que afagavam os braços da árvore.
noutro pinheiro ao lado estancou. depois abraçou o tronco. abraçou com força. e a cada estímulo da natureza esboçava um espanto de criança. caminhou entrelaçado pelas árvores. as aves. as aves e as árvores. olhou então para um senhor ali perto que se fascinava num jornal e pediu um cigarro. recebeu um abanão de cabeça. pediu muita desculpa por incomodar e libertou estas palavras:
polícia... polícia chegou... pé mim... apalpou apalpou apalpou... tenho nada... (e cabisbaixava para os pés negros de surro)... estive preso dois meses... (e entoava um sotaque brasileiro)... agora saí... mas tenho arranjar emprego... sabe?... ali esquerda... circo tché... sabe?... ali esquerda... circo tché... vou lá tentar emprego... senão estou fodido!
e fugiu por entre a caruma. trepou pela casca do pinheiro e desapareceu.
e.e.
quarta-feira, dezembro 01, 2004
Thomas Bernhard
(...)
Quando um amigo morre prendemo-lo com um alfinete às suas próprias máximas, às suas declarações, matamo-lo com as suas próprias armas.
(...)
in O Náufrago, Relógio D' Água Editores, p.49
note-se: a tradução não é nada famosa; para não falar das inumeráveis gralhas de texto.
caso alguém conheça outra versão em português, seria bom indicá-la para o email do blog.
gracias
compadres de taberna
(...)
Quando um amigo morre prendemo-lo com um alfinete às suas próprias máximas, às suas declarações, matamo-lo com as suas próprias armas.
(...)
in O Náufrago, Relógio D' Água Editores, p.49
note-se: a tradução não é nada famosa; para não falar das inumeráveis gralhas de texto.
caso alguém conheça outra versão em português, seria bom indicá-la para o email do blog.
gracias
compadres de taberna
domingo, novembro 28, 2004
Manuel António Pina
Primeiro Domingo
A tarde estava errada,
não era dali, era de outro Domingo,
quando ainda não tinhas acontecido,
e apenas eras uma memória parada
sonhando (no meu sonho) comigo.
E eu, como um estranho, passava
no jardim fora de mim
como alguém de quem alguém se lembrava
vagamente (talvez tu),
num tempo alheio e impresente.
Tudo estava no seu lugar
(o teu lugar), excepto a tua existência,
que te aguardava ainda, no limiar
de uma súbita ausência,
principalmente de sentido.
in Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança, Assírio & Alvim, Lisboa
Primeiro Domingo
A tarde estava errada,
não era dali, era de outro Domingo,
quando ainda não tinhas acontecido,
e apenas eras uma memória parada
sonhando (no meu sonho) comigo.
E eu, como um estranho, passava
no jardim fora de mim
como alguém de quem alguém se lembrava
vagamente (talvez tu),
num tempo alheio e impresente.
Tudo estava no seu lugar
(o teu lugar), excepto a tua existência,
que te aguardava ainda, no limiar
de uma súbita ausência,
principalmente de sentido.
in Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança, Assírio & Alvim, Lisboa
segunda-feira, novembro 22, 2004
talho sinfónico
emparedados num microcosmos circular
de vozes vorazes e planetárias
e trepidantes e ruidosas
e a cabeça às voltas e voltas
e o som em forma de cruz
cintilando nos ouvidos querendo
acumular cera
acumular cera com a justificação
das vozes vorazes e planetárias
que testemunharam o irracional
racionalmente falando
é claro!
e a escuridão donde a luz se evola
e os altifalantes pendurados
como um talho sinfónico
e os ouvidos hipnotizando as gargantas
e as pestanas e as auréolas cerebrais
e o magnetismo
das vozes vorazes e planetárias
ajoelhando-se à porta da bizarria
e o círculo e a cruz
e o círculo cada vez mais fechado
e todos tentando escapar ao irracional
visto que a saída
racionalmente falando
não existia
aseiçaneves
(a partir de Witness de Susan Hiller, 2004)
..........................................
Maratona de Leitura - Culturgest
27 de novembro das 15h às 19h30
www.culturgest.pt/actual/maratona_de_leitura.html
emparedados num microcosmos circular
de vozes vorazes e planetárias
e trepidantes e ruidosas
e a cabeça às voltas e voltas
e o som em forma de cruz
cintilando nos ouvidos querendo
acumular cera
acumular cera com a justificação
das vozes vorazes e planetárias
que testemunharam o irracional
racionalmente falando
é claro!
e a escuridão donde a luz se evola
e os altifalantes pendurados
como um talho sinfónico
e os ouvidos hipnotizando as gargantas
e as pestanas e as auréolas cerebrais
e o magnetismo
das vozes vorazes e planetárias
ajoelhando-se à porta da bizarria
e o círculo e a cruz
e o círculo cada vez mais fechado
e todos tentando escapar ao irracional
visto que a saída
racionalmente falando
não existia
aseiçaneves
(a partir de Witness de Susan Hiller, 2004)
..........................................
Maratona de Leitura - Culturgest
27 de novembro das 15h às 19h30
www.culturgest.pt/actual/maratona_de_leitura.html
sexta-feira, novembro 19, 2004
Sagradíssimo comparsa. Mui excelso maganão sr. Álvaro,
Envio-lhe de tais modos o modestíssimo opúsculo que lhe referi. Hei
decidido, por mistérios além de toda a metafísica, que fosse uma
elegia - forma poética em consonância com toda a tralha do passado.
Coisa de pasmar.
Não percebendo nada de arquitectura, as musas ditaram um poemeto sobre
a minha Dama, a mais Bela: a Morte. Mui romanticamente. Mui
estrombasticamente.
Encarecidamente, o seu condiscípulo,
Bruno Ribeiro de Almeida, Visconde da Caparica, Marquês da Banática e
arrabaldes, Coronel da 21ª Companhia de Dragões do Samouco.
Viva o Senhor Doutor Oliveira Salazar! viva o Estado Novo! viva!
............................................
elegia a um arquitecto
talvez isto te comova: teres à tua disposição o vazio,
e com olhos de carne manobrares a pedra em linhas e planos.
revelar o seu desejo de geometria - eis o enredo.
e que teia erótica é esta:
coisas que se edificam, carne fermentando-se a cada instante,
e resta um edifício algures, síntese do tempo. ordem,
mais que tudo, habitável. é preciso que funcione
como coisa humana, propensa a ser remexida dia e noite.
suja de passos e de impressões digitais - outros testemunhos.
depois vem a memória. és perecível, meu caro. a morte
também toca aos arquitectos: sejam eles quais forem.
tenebrosamente. sejam eles quais forem. não se edifica
sem dialogar com o tempo.
sobrevêm as primeiras dificuldades. há uma vertigem
entre a torre e o labirinto. entretanto
sente-se o cabelo a crescer, a encanar.
e os desejos? e as linhas cortadas pelo betão armado?
de barbas pelo chão guinchas pela arquitectura:
a carne tem destas coisas...
seguem-se vigílias, episódios comoventes,
e à maneira de epílogo saltas dum varandim abaixo.
– os teus olhos transbordam de arquitectura.
bruno r. almeida
Envio-lhe de tais modos o modestíssimo opúsculo que lhe referi. Hei
decidido, por mistérios além de toda a metafísica, que fosse uma
elegia - forma poética em consonância com toda a tralha do passado.
Coisa de pasmar.
Não percebendo nada de arquitectura, as musas ditaram um poemeto sobre
a minha Dama, a mais Bela: a Morte. Mui romanticamente. Mui
estrombasticamente.
Encarecidamente, o seu condiscípulo,
Bruno Ribeiro de Almeida, Visconde da Caparica, Marquês da Banática e
arrabaldes, Coronel da 21ª Companhia de Dragões do Samouco.
Viva o Senhor Doutor Oliveira Salazar! viva o Estado Novo! viva!
............................................
elegia a um arquitecto
talvez isto te comova: teres à tua disposição o vazio,
e com olhos de carne manobrares a pedra em linhas e planos.
revelar o seu desejo de geometria - eis o enredo.
e que teia erótica é esta:
coisas que se edificam, carne fermentando-se a cada instante,
e resta um edifício algures, síntese do tempo. ordem,
mais que tudo, habitável. é preciso que funcione
como coisa humana, propensa a ser remexida dia e noite.
suja de passos e de impressões digitais - outros testemunhos.
depois vem a memória. és perecível, meu caro. a morte
também toca aos arquitectos: sejam eles quais forem.
tenebrosamente. sejam eles quais forem. não se edifica
sem dialogar com o tempo.
sobrevêm as primeiras dificuldades. há uma vertigem
entre a torre e o labirinto. entretanto
sente-se o cabelo a crescer, a encanar.
e os desejos? e as linhas cortadas pelo betão armado?
de barbas pelo chão guinchas pela arquitectura:
a carne tem destas coisas...
seguem-se vigílias, episódios comoventes,
e à maneira de epílogo saltas dum varandim abaixo.
– os teus olhos transbordam de arquitectura.
bruno r. almeida
quarta-feira, novembro 17, 2004
minotauro
nos túneis do metro. um minotauro esquecido. esquecendo o touro. deixara-o em tempos. durante sempre para trás. agora era mino. suas solas eram ossos de bacia. enterrara o touro no solo. confessara-me: enterrei o touro no solo. a mansidão invadira-o. varejava por ali. nos túneis do metro. pedia a esmola de ser um homem enterrado. mas ninguém queria saber.
para Eles não sou um homem. sou mino O terrível mino. esquecem-se disso (pois esquecem mino). esquecem-se que Eles nem são homens nem mulheres nem outra coisa qualquer. eles são cadáveres. mas nem o notam. já dizia o poeta. aquele com nome de pessoa. fernando não era? disparava mino.
talvez mino. talvez seja isso tudo ou seja outra coisa incompreensível.
homem enterrado na vida. enterrado no passado. para trás. só caixa torácica e experiência.
o resto. o resto era a puta da vida. um labirinto.
e.e.
nos túneis do metro. um minotauro esquecido. esquecendo o touro. deixara-o em tempos. durante sempre para trás. agora era mino. suas solas eram ossos de bacia. enterrara o touro no solo. confessara-me: enterrei o touro no solo. a mansidão invadira-o. varejava por ali. nos túneis do metro. pedia a esmola de ser um homem enterrado. mas ninguém queria saber.
para Eles não sou um homem. sou mino O terrível mino. esquecem-se disso (pois esquecem mino). esquecem-se que Eles nem são homens nem mulheres nem outra coisa qualquer. eles são cadáveres. mas nem o notam. já dizia o poeta. aquele com nome de pessoa. fernando não era? disparava mino.
talvez mino. talvez seja isso tudo ou seja outra coisa incompreensível.
homem enterrado na vida. enterrado no passado. para trás. só caixa torácica e experiência.
o resto. o resto era a puta da vida. um labirinto.
e.e.
terça-feira, novembro 16, 2004
schiele. auto-retrato.
tomei café com um desenho do egon schiele. ganhara contudo volume. densidade. schiele sobrevive. continua cá.
entre nós.
e as fechaduras que deixou por abrir. as portas entreabertas para as quais nos incitou a descobrir e a refazer. permanecem. solidificou-se uma réstia de transposição. e ficamos mais vidrados. com as mandíbulas bem tesas e apertadas. é casual. mas aconteceu. aqui. nesta esplanada. uma passagem para uma tri. dimensionalidade. assomada nesta personagem em código.
são as orelhas a pontiagar no topo. é fantástico tomar café com um desenho do egon schiele. são as enseadas de pele que rasgam a floresta capilar. é a altura média da testa. o seu desenho a antracite. o branco iluminando este rosto contorcido. amarelado. encarnado. com a saliência das esferas oculares. dois globos a querer explodir. e meio olho de cada lado a desprender-se das pálpebras elásticas. cortadas em traço. formando-se um ciclope. ciclope que representa outra parte da fresta entreaberta da porta. depois é este nariz sinuosamente recto que parece não acabar. são as sobrancelhas frisadas em arco e as rugas trepando até à calvície. os ossos salientes e rijos.
auto-retrato
e como é inquietante continuar a desconhecer o desenho. egon schiele. e a pessoa que está à minha frente tomando um café que parece não acabar.
e.e.
tomei café com um desenho do egon schiele. ganhara contudo volume. densidade. schiele sobrevive. continua cá.
entre nós.
e as fechaduras que deixou por abrir. as portas entreabertas para as quais nos incitou a descobrir e a refazer. permanecem. solidificou-se uma réstia de transposição. e ficamos mais vidrados. com as mandíbulas bem tesas e apertadas. é casual. mas aconteceu. aqui. nesta esplanada. uma passagem para uma tri. dimensionalidade. assomada nesta personagem em código.
são as orelhas a pontiagar no topo. é fantástico tomar café com um desenho do egon schiele. são as enseadas de pele que rasgam a floresta capilar. é a altura média da testa. o seu desenho a antracite. o branco iluminando este rosto contorcido. amarelado. encarnado. com a saliência das esferas oculares. dois globos a querer explodir. e meio olho de cada lado a desprender-se das pálpebras elásticas. cortadas em traço. formando-se um ciclope. ciclope que representa outra parte da fresta entreaberta da porta. depois é este nariz sinuosamente recto que parece não acabar. são as sobrancelhas frisadas em arco e as rugas trepando até à calvície. os ossos salientes e rijos.
auto-retrato
e como é inquietante continuar a desconhecer o desenho. egon schiele. e a pessoa que está à minha frente tomando um café que parece não acabar.
e.e.
sexta-feira, novembro 12, 2004
quarta-feira, novembro 10, 2004
(...)
Assim como as alamedas que se estendiam a perder de vista e cujos largos raios submetiam os horizontes, pareciam não ter sido traçados para servirem ao lento acesso das carruagens, mas que o arquitecto, mercê de alguma obscura e genial presciência, as havia destinado, com trezentos anos de antecedência, aos veículos modernos. O certo é que não há motivo para os homens se esforçarem por fazer algo de duradoiro se não pressentirem confusamente que a sua obra deverá esperar por um acréscimo de beleza, que eles de momento são incapazes de lhe conferir, mas que o futuro lhes reservará. Não se faz grande, espera-se que engrandeça.
(...)
in O Supermacho, Alfred Jarry, Edições Afrodite, Lisboa, 1975, p.32.
O original francês, Surmâle, data de 1902.
Assim como as alamedas que se estendiam a perder de vista e cujos largos raios submetiam os horizontes, pareciam não ter sido traçados para servirem ao lento acesso das carruagens, mas que o arquitecto, mercê de alguma obscura e genial presciência, as havia destinado, com trezentos anos de antecedência, aos veículos modernos. O certo é que não há motivo para os homens se esforçarem por fazer algo de duradoiro se não pressentirem confusamente que a sua obra deverá esperar por um acréscimo de beleza, que eles de momento são incapazes de lhe conferir, mas que o futuro lhes reservará. Não se faz grande, espera-se que engrandeça.
(...)
in O Supermacho, Alfred Jarry, Edições Afrodite, Lisboa, 1975, p.32.
O original francês, Surmâle, data de 1902.
terça-feira, novembro 09, 2004
Sobre um Poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder
A Contradição
No lugar de um “sim” deveria estar um “não”.
Assim termina a jornada que nunca chegou a ser iniciada.
Estava eu sorridente, feliz por estar onde estava com quem não estava, e a repetir de forma incessante e algo contrariada as palavras que ouvira dizer essa amanhã:
“Tudo o que te disserem é mentira.”
Como poderia ele, com tanta segurança, afirmar que de outra forma não o era? Onde vai ele buscar essa crença imbatível que lhe permite atravessar de olhos fechados a instável ponte que une o dizer ao saber?
Suponhamos que, de facto, tudo o que me disserem é mentira. Todas as afirmações que ouço diariamente, desde “Estou atrasado…” até “Amanhã vou a Xangai” estão totalmente corrompidas pela falsidade; como tal, significam exactamente o oposto da ideia que aparentam transmitir. Nesse caso, até aquilo que ele mesmo afirma estaria encerrado em falsidade e negação. Logo, nem tudo aquilo que me disserem é mentira. Tem de haver pelo menos uma afirmação verdadeira. Mas… qual?
A resposta aponta-nos irremediavelmente para a sua própria declaração, que defende que tudo aquilo que me disserem é falso. Ao assumir-se como mentirosa, a afirmação consegue suportar-se como verdadeira, por não entrar em contradição com aquilo que sustém. Incrível! Ao ceder toda a sua credibilidade, ela torna-se verdadeira e correcta!
Tudo o que me disserem é de facto mentira, porque alguém me mente dizendo-me a verdade, alguém que é sincero quando me prova que não o é…
Perante isto, como poderia eu duvidar dele?
Cristóvão Figueiredo
Vivam Apenas
Vivam, apenas
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes
Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.
Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.
E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.
Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!
José Gomes Ferreira
domingo, novembro 07, 2004
Onda Poética
A Sessão n.º 80 (OITENTA!) da ONDA POÉTICA realizar-se-á no próximo dia 8 de Novembro, Segunda-Feira próxima, no Bar Dominó do Casino de Espinho, pelas 21.30 horas.
A primeira parte será preenchida com a leitura por vários residentes e convidados de uma colagem, da responsabilidade de Anthero Monteiro, de textos dos seguintes autores: Vinicius de Moraes, Ruy Belo, Joaquim Namorado, Álvaro Feijó, Manuel Alegre, Mário Dionísio, Sidónio Muralha, António Aleixo e José Afonso, todos subordinados ao tema “CONSTRUÇÃO”.
Os interlúdios musicais estarão a cargo de Carlos Andrade (voz e guitarra acústica).
A segunda parte destinar-se-á à intervenção dos ESPONTÂNEOS, sob tema livre.
Saudações culturais e poéticas do
Coordenador da ONDA POÉTICA
Anthero Monteiro
A Sessão n.º 80 (OITENTA!) da ONDA POÉTICA realizar-se-á no próximo dia 8 de Novembro, Segunda-Feira próxima, no Bar Dominó do Casino de Espinho, pelas 21.30 horas.
A primeira parte será preenchida com a leitura por vários residentes e convidados de uma colagem, da responsabilidade de Anthero Monteiro, de textos dos seguintes autores: Vinicius de Moraes, Ruy Belo, Joaquim Namorado, Álvaro Feijó, Manuel Alegre, Mário Dionísio, Sidónio Muralha, António Aleixo e José Afonso, todos subordinados ao tema “CONSTRUÇÃO”.
Os interlúdios musicais estarão a cargo de Carlos Andrade (voz e guitarra acústica).
A segunda parte destinar-se-á à intervenção dos ESPONTÂNEOS, sob tema livre.
Saudações culturais e poéticas do
Coordenador da ONDA POÉTICA
Anthero Monteiro
quarta-feira, novembro 03, 2004
asno
se por entre o teu pulmão
de vestígios vedados
não se vislumbrasse a pleura de asno
que tentas ocultar
aí sim
se por entre as tripas verdadeiras
que afirmas desfazer
não se vincasse um cólon
de excrementos falsos
aí sim
sorririas melhor
chorarias melhor
amarias melhor
e contigo todos
aseiçaneves
se por entre o teu pulmão
de vestígios vedados
não se vislumbrasse a pleura de asno
que tentas ocultar
aí sim
se por entre as tripas verdadeiras
que afirmas desfazer
não se vincasse um cólon
de excrementos falsos
aí sim
sorririas melhor
chorarias melhor
amarias melhor
e contigo todos
aseiçaneves
sexta-feira, outubro 29, 2004
quarta-feira, outubro 20, 2004
EXORTAÇÃO
Se te apetece ir por um lado, vai, indiferente
a tôdas as ameaças e a todos os protestos,
mas se te não deixam ir e querem que vás por outro,
cruza os braços e deixa-te estar,
inerte como uma montanha,
até tudo à tua volta cair aos pedaços
e tu e o mundo serem só horizonte.
in Voz Arremessada ao Caminho, Armindo Rodrigues, Lisboa, 1943.
Se te apetece ir por um lado, vai, indiferente
a tôdas as ameaças e a todos os protestos,
mas se te não deixam ir e querem que vás por outro,
cruza os braços e deixa-te estar,
inerte como uma montanha,
até tudo à tua volta cair aos pedaços
e tu e o mundo serem só horizonte.
in Voz Arremessada ao Caminho, Armindo Rodrigues, Lisboa, 1943.
sábado, outubro 16, 2004
Paula Rego - a defunta figurativa
empresta-se título a dissertações, basta enviarem para o email do blog caputblog@hotmail.com
entretanto vou preparando a minha.
de qualquer maneira, inaugurou ontem a exposição da Paula Rego, no Museu de Serralves (MACS), no Porto.
passem por lá e iniciem a efabulação.
fica a proposta aos pensadores e às pensadoras, diria Guterres.
aseiçaneves
empresta-se título a dissertações, basta enviarem para o email do blog caputblog@hotmail.com
entretanto vou preparando a minha.
de qualquer maneira, inaugurou ontem a exposição da Paula Rego, no Museu de Serralves (MACS), no Porto.
passem por lá e iniciem a efabulação.
fica a proposta aos pensadores e às pensadoras, diria Guterres.
aseiçaneves
quinta-feira, outubro 14, 2004
L'ESPOIR EN PALESTINE
EST UNE VEILLEUSE FRAGILE
Pour ne pas fléchir
Pour ne pas mourir
Ils sont quelques uns
A tenir à résister
A s'arc-bouter
Contre vents et marées
Défiant le soleil des armes
Les mâchoires de la mort
Leur éclat meurtrier
Car il leur faut persister
Persister sans fin
Dans l'âpreté des jours
Comme si eux et leur tolérance
Ne devaient jamais mourir...
Car tout ce qui fut dit
Crié répété dénoncé
Tout ce qui est emporté
Etouffé pulvérisé
Persiste pourtant
Sous les décombres
De la mémoire
Et brûle toujours
dans le regard incandescent
de ces enfants de Ramallah
qui leur survivront
Dans ce poème
Ce n'est pas moi qui vous interpelle
Dans ce poème
Ce n'est pas ma voix
Que vous entendez
Mais ce qui les maintient
L'ombre désespérée
De la réconciliation
Cet espoir infini
Au coeur des hommes
Car dans leurs mains qui tremblent
Cette petite lueur de l'espoir à l'Orient
Est une veilleuse fragile
Au coeur de la nuit carnassière...
Paris, décembre 2003
Bernard Mazo
EST UNE VEILLEUSE FRAGILE
A Mahmoud Darwich
Sur cette terre vouée au désastrePour ne pas fléchir
Pour ne pas mourir
Ils sont quelques uns
A tenir à résister
A s'arc-bouter
Contre vents et marées
Défiant le soleil des armes
Les mâchoires de la mort
Leur éclat meurtrier
Car il leur faut persister
Persister sans fin
Dans l'âpreté des jours
Comme si eux et leur tolérance
Ne devaient jamais mourir...
Car tout ce qui fut dit
Crié répété dénoncé
Tout ce qui est emporté
Etouffé pulvérisé
Persiste pourtant
Sous les décombres
De la mémoire
Et brûle toujours
dans le regard incandescent
de ces enfants de Ramallah
qui leur survivront
Dans ce poème
Ce n'est pas moi qui vous interpelle
Dans ce poème
Ce n'est pas ma voix
Que vous entendez
Mais ce qui les maintient
L'ombre désespérée
De la réconciliation
Cet espoir infini
Au coeur des hommes
Car dans leurs mains qui tremblent
Cette petite lueur de l'espoir à l'Orient
Est une veilleuse fragile
Au coeur de la nuit carnassière...
Paris, décembre 2003
Bernard Mazo
quarta-feira, outubro 13, 2004
à Gerência
a urina tinha subido à cabeça urina urina urina mas já era mijo mijo mijo e mijo na porta nas paredes retrete fora retrete dentro mijo no chão num papel que não se lia mijo para cima mijo para baixo mijo mijo mijo tudo escorregadio
debruçado no papel lia-se para bem da saúde de todos é favor não urinar no chão e puxar o autoclismo a Gerência
não puxou foi-se embora contrariado mas deixando tudo muito bem
urinado
aseiçaneves
a urina tinha subido à cabeça urina urina urina mas já era mijo mijo mijo e mijo na porta nas paredes retrete fora retrete dentro mijo no chão num papel que não se lia mijo para cima mijo para baixo mijo mijo mijo tudo escorregadio
debruçado no papel lia-se para bem da saúde de todos é favor não urinar no chão e puxar o autoclismo a Gerência
não puxou foi-se embora contrariado mas deixando tudo muito bem
urinado
aseiçaneves
sexta-feira, outubro 08, 2004
Lomo
lomógrafos...eis um bom destaque...agora mutilem-se esteticamente!
danieltércio photoswebsite
www.lomohomes.com/dtercio
lomógrafos...eis um bom destaque...agora mutilem-se esteticamente!
danieltércio photoswebsite
www.lomohomes.com/dtercio
quinta-feira, outubro 07, 2004
Propostas
Julião Sarmento Ghosts
CAV - Centro de Artes Visuais - Encontros de Fotografia
Julião Sarmento apresenta-nos duas obras em vídeo, de carácter interactivo. Ghosts e Ghost: trata-se de duas instalações vídeo, a cores, com som, datadas de 2004, tendo sido especialmente produzidas para o contexto desta exposição. Através da recorrência a dispositivos de interactividade, em que o espectador desempenha necessariamente um papel fulcral, Julião Sarmento procura questionar mecanismos de produção de sentido, de construção da memória e de apreensão do real. Com base numa premissa dual: presença/ ausência, convida o espectador a entrar num jogo de percepção em que o som funciona simultaneamente como elemento agregador e como dispositivo de acção. Por ocasião da exposição será editado um Catálogo com imagens das duas obras e um texto de David Barro.
Pátio da Inquisição, 10
3000 Coimbra, Portugal
De Terça a Domingo das 10:00 às 19:00, até 26 dez
www.cav.net4b.pt
T: + 351 239 826 178
Bernard Mazo Conferência Poesia Árabe Contemporânea
Casa Fernando Pessoa, dia 12 de Outubro, pelas 18.30
A apresentação e moderação da sessão estará a cargo do poeta Casimiro de Brito. Haverá ainda lugar para a leitura de grandes vozes poéticas do mundo árabe contemporâneo como Mamouhd Darwich e Adónis.
Bernard Mazo nasceu em Paris, em 1939. Poeta e ensaísta, crítico literário, colabora em diversas publicações e é co-director do jornal mensal Aujourd'hui Poème, membro do comité de redacção da revista Poesia 1, de Quantara, a revista do Instituto do Mundo Árabe, membro da Academia Mallarmé, do PEN Club Francês e secretário geral do Prémio Apollinaire. Publicou 8 livros de poesia, Cette absence infinie au coeur des Choses (2004), La Vie Foudroyée (1999), Dans le Froid Mortel de l'Exil (1998), Dilapidation du Silence (1981), La Parole Retrouvé (1985), Mouvante Mémoire (1970), La Chaleur Durable (1966) e Passage du Silence (1964). A sua obra figura em diversas antologias da poesia francesa contemporânea.
www.casafernandopessoa.com
Julião Sarmento Ghosts
CAV - Centro de Artes Visuais - Encontros de Fotografia
Julião Sarmento apresenta-nos duas obras em vídeo, de carácter interactivo. Ghosts e Ghost: trata-se de duas instalações vídeo, a cores, com som, datadas de 2004, tendo sido especialmente produzidas para o contexto desta exposição. Através da recorrência a dispositivos de interactividade, em que o espectador desempenha necessariamente um papel fulcral, Julião Sarmento procura questionar mecanismos de produção de sentido, de construção da memória e de apreensão do real. Com base numa premissa dual: presença/ ausência, convida o espectador a entrar num jogo de percepção em que o som funciona simultaneamente como elemento agregador e como dispositivo de acção. Por ocasião da exposição será editado um Catálogo com imagens das duas obras e um texto de David Barro.
Pátio da Inquisição, 10
3000 Coimbra, Portugal
De Terça a Domingo das 10:00 às 19:00, até 26 dez
www.cav.net4b.pt
T: + 351 239 826 178
Bernard Mazo Conferência Poesia Árabe Contemporânea
Casa Fernando Pessoa, dia 12 de Outubro, pelas 18.30
A apresentação e moderação da sessão estará a cargo do poeta Casimiro de Brito. Haverá ainda lugar para a leitura de grandes vozes poéticas do mundo árabe contemporâneo como Mamouhd Darwich e Adónis.
Bernard Mazo nasceu em Paris, em 1939. Poeta e ensaísta, crítico literário, colabora em diversas publicações e é co-director do jornal mensal Aujourd'hui Poème, membro do comité de redacção da revista Poesia 1, de Quantara, a revista do Instituto do Mundo Árabe, membro da Academia Mallarmé, do PEN Club Francês e secretário geral do Prémio Apollinaire. Publicou 8 livros de poesia, Cette absence infinie au coeur des Choses (2004), La Vie Foudroyée (1999), Dans le Froid Mortel de l'Exil (1998), Dilapidation du Silence (1981), La Parole Retrouvé (1985), Mouvante Mémoire (1970), La Chaleur Durable (1966) e Passage du Silence (1964). A sua obra figura em diversas antologias da poesia francesa contemporânea.
www.casafernandopessoa.com
quarta-feira, outubro 06, 2004
DEFESA
ah esta velha mania
de prolongar na noite o parco dia
e rebuscar na solidão maior
remédio
para o tédio
e para a dor
ah esta velha doença
de alinhar sinónimos de fel
ao longo do papel
e de gravar sinais de desvario
de loucura e de frio
nesta segunda pele
com a crença
de que a estrutura em verso
defendendo o meu íntimo vazio
suportará o peso do universo
in desesperânsia, Anthero Monteiro, Corpos Editora, 2003.
ah esta velha mania
de prolongar na noite o parco dia
e rebuscar na solidão maior
remédio
para o tédio
e para a dor
ah esta velha doença
de alinhar sinónimos de fel
ao longo do papel
e de gravar sinais de desvario
de loucura e de frio
nesta segunda pele
com a crença
de que a estrutura em verso
defendendo o meu íntimo vazio
suportará o peso do universo
in desesperânsia, Anthero Monteiro, Corpos Editora, 2003.
mestizo
– mestizo!
mestizo! he hailed
however Eduardo solemn
in the grave of his spirit
carved tribes formerly
– the deported slaves –
and as one tractor
sewing the soil
with one soft row of denouncement
unlaced…
– mestizo!
– knock! someone flung you to the beasts!
shattered Eduardo
crammed and soaked
and in the grave of his spirit
unlaced…
one gazelle one winged rumour…
ASN
– mestizo!
mestizo! he hailed
however Eduardo solemn
in the grave of his spirit
carved tribes formerly
– the deported slaves –
and as one tractor
sewing the soil
with one soft row of denouncement
unlaced…
– mestizo!
– knock! someone flung you to the beasts!
shattered Eduardo
crammed and soaked
and in the grave of his spirit
unlaced…
one gazelle one winged rumour…
ASN
quinta-feira, setembro 30, 2004
The Stolen Thief
She showed me to her room where she had gathered, through time and fate and purchase, a vibrant collection of antique books and mythological figurines. I was especially struck by the wooden carving near her bed and strolling over to it and picking it up for a closer inspection, she remarked casually "Prometheus."
Yes-it was surely Prometheus! The little figure clearly held the stolen fire in his clenched fist, and somehow (miraculously in fact considering that the sculpture was made entirely of ebony) the sculptor had imbued the figurine's eyes with a magical almost electric glow. I stared deeply into them for a long moment.
"Ah yes, you've spotted the prize of my collection!" she cried out suddenly, her voice bubbling with delight. "Does it have a story?" I asked, knowing that it certainly did and hoping she'd indulge it. "Yes," she took a deep breath, "it does."
And she went on to describe the odd sequence of seemingly chance events which had unavoidably led her to the scene of a fire, a large antique store wreathed in destructive glow. Sirens blared and a crowd gathered across the street to watch the magic ballet of flames shuddering out of the growing inferno. The enchanting chaos of the glorious destruction and the whirl of silhouetted firefighters superimposed upon the bright holocaust seared the night with meaning and granted the fire an aura of a long to be remembered event. Unperturbed by the smoke of thinking, she'd inched closer and closer to the nexus of the hypnotic spectacle.
She described an odd magnetism which drew her towards a window on the far side of the building. Of course the whole area of the fire had been strictly cordoned off by the firemen who were actively engaged in containing the blaze, but as the profound poise of any immaculately certain person grants them a momentary yet immediate authority (she said she "belonged to the fate of the fire" and "God's dreams cannot be woken from"), she'd snuck through a gap in the line of fire-trucks, swerved past several firefighters and stepped to the sill of the window she'd felt so inextricably drawn to. Looking in she'd perceived that the enormous heat from the fire had caused the glass to shatter, leaving only a few shark-like shards to glisten along its jaw-like frame. Stretching her hand inside, carefully navigating the trajectory of her outstretched arm to avoid being impaled by the remaining shards, she'd maneuvered her fingers until they came to rest upon a singularly enticing object. She'd grabbed it and quickly pulled it out and placed it under her shirt without even looking to see what it was... calmly and stealthily she'd crept from the building and slipped back into the crowd.
Struck by an amateur thief's surge of panic, she'd ducked down a small alleyway and ran and ran till she'd reached the steps of her home. Dashing up the stairs she'd crept to her bedroom, taken a few deep breaths, and then shiveringly pulled out from underneath her shirt the object of her impromptu burglary and lo and behold! it was the object I currently held in my own now shivering hands: Prometheus!
"It was thus," she said as she seized me by the waist and pulled me onto the bed in a madly sensuous embrace "that I stole Prometheus from the fire!"
Lucien Zell
in Cafe Irreal: Issue number twelve, August 2004.
* * * * *
Lucien Zell was born in Los Angeles. Born with a birth-defect, a missing right hand, he quickly turned to the performing arts as a means to express a face of beauty which he felt dwelling latent behind the mask of body. Just days before he was to attend Cornish College of the Arts on a full-scholarship, however, his brother committed suicide, and he left America on a ten year trek through Europe, Russia, and the Middle East, finally settling in Prague where his first volume of poems, The Sad Cliffs of Light, was published (by a Czech publishing house, DharmaGaia) and released in 1999. A second collection of poems, Eden's Midnight Playground, was published by DharmaGaia in December of 2003. The father of three children, Zell currently resides in Prague.
She showed me to her room where she had gathered, through time and fate and purchase, a vibrant collection of antique books and mythological figurines. I was especially struck by the wooden carving near her bed and strolling over to it and picking it up for a closer inspection, she remarked casually "Prometheus."
Yes-it was surely Prometheus! The little figure clearly held the stolen fire in his clenched fist, and somehow (miraculously in fact considering that the sculpture was made entirely of ebony) the sculptor had imbued the figurine's eyes with a magical almost electric glow. I stared deeply into them for a long moment.
"Ah yes, you've spotted the prize of my collection!" she cried out suddenly, her voice bubbling with delight. "Does it have a story?" I asked, knowing that it certainly did and hoping she'd indulge it. "Yes," she took a deep breath, "it does."
And she went on to describe the odd sequence of seemingly chance events which had unavoidably led her to the scene of a fire, a large antique store wreathed in destructive glow. Sirens blared and a crowd gathered across the street to watch the magic ballet of flames shuddering out of the growing inferno. The enchanting chaos of the glorious destruction and the whirl of silhouetted firefighters superimposed upon the bright holocaust seared the night with meaning and granted the fire an aura of a long to be remembered event. Unperturbed by the smoke of thinking, she'd inched closer and closer to the nexus of the hypnotic spectacle.
She described an odd magnetism which drew her towards a window on the far side of the building. Of course the whole area of the fire had been strictly cordoned off by the firemen who were actively engaged in containing the blaze, but as the profound poise of any immaculately certain person grants them a momentary yet immediate authority (she said she "belonged to the fate of the fire" and "God's dreams cannot be woken from"), she'd snuck through a gap in the line of fire-trucks, swerved past several firefighters and stepped to the sill of the window she'd felt so inextricably drawn to. Looking in she'd perceived that the enormous heat from the fire had caused the glass to shatter, leaving only a few shark-like shards to glisten along its jaw-like frame. Stretching her hand inside, carefully navigating the trajectory of her outstretched arm to avoid being impaled by the remaining shards, she'd maneuvered her fingers until they came to rest upon a singularly enticing object. She'd grabbed it and quickly pulled it out and placed it under her shirt without even looking to see what it was... calmly and stealthily she'd crept from the building and slipped back into the crowd.
Struck by an amateur thief's surge of panic, she'd ducked down a small alleyway and ran and ran till she'd reached the steps of her home. Dashing up the stairs she'd crept to her bedroom, taken a few deep breaths, and then shiveringly pulled out from underneath her shirt the object of her impromptu burglary and lo and behold! it was the object I currently held in my own now shivering hands: Prometheus!
"It was thus," she said as she seized me by the waist and pulled me onto the bed in a madly sensuous embrace "that I stole Prometheus from the fire!"
Lucien Zell
in Cafe Irreal: Issue number twelve, August 2004.
* * * * *
Lucien Zell was born in Los Angeles. Born with a birth-defect, a missing right hand, he quickly turned to the performing arts as a means to express a face of beauty which he felt dwelling latent behind the mask of body. Just days before he was to attend Cornish College of the Arts on a full-scholarship, however, his brother committed suicide, and he left America on a ten year trek through Europe, Russia, and the Middle East, finally settling in Prague where his first volume of poems, The Sad Cliffs of Light, was published (by a Czech publishing house, DharmaGaia) and released in 1999. A second collection of poems, Eden's Midnight Playground, was published by DharmaGaia in December of 2003. The father of three children, Zell currently resides in Prague.
terça-feira, setembro 28, 2004
sapos
sapos arqueados. em todo o lado. contrabaixo. piano. sapos de dedos esquiçados. sapos ao som do jazz. jazz ecoando nos nossos corações. corações acelerados pela mentira da realidade que nos dão a comer. a engolir com o punho. corações tristes e sós. corações contorcidos que encontram na música a unidade do vitral a unidade da poesia. sapos em todo o lado. na música. soberbos.
e.e.
sapos arqueados. em todo o lado. contrabaixo. piano. sapos de dedos esquiçados. sapos ao som do jazz. jazz ecoando nos nossos corações. corações acelerados pela mentira da realidade que nos dão a comer. a engolir com o punho. corações tristes e sós. corações contorcidos que encontram na música a unidade do vitral a unidade da poesia. sapos em todo o lado. na música. soberbos.
e.e.
alfarrobas
a ria foi dragada. já não se pode atravessar o canal com água pela cintura. joelhos. ou mesmo pelo pescoço. foi dragada. escravizada. e as alfarrobas dançam sobre as crinas dos cavalos que as tentam mastigar. alfarrobas que atravessam o canal já não em bateiras mas em barcos. com cais e cais. a praia tem alforrecas revestidas de sacos de plástico cigarros pedaços de papel e muitas algas fervendo no caldo macio que é a banheira onde nós. alfarrobas. nos tentamos. há vento de oeste. e a ria foi dragada e o seu fundo ventre profundo vincado pelas pás graves dos abutres. os peixes fugiram. as ovas voaram. o leito deslocado e o canal e o canal. o canal dançando também. tocado por este vento de oeste que tudo leva. este vento que transforma água em fino pó de cianeto e se derrama em cima de nós. alfarrobas dançando sobre as crinas dos cavalos. atolados. com suas finas patas enfiadas num lamaçal de alforrecas. dragado.
e.e.
a ria foi dragada. já não se pode atravessar o canal com água pela cintura. joelhos. ou mesmo pelo pescoço. foi dragada. escravizada. e as alfarrobas dançam sobre as crinas dos cavalos que as tentam mastigar. alfarrobas que atravessam o canal já não em bateiras mas em barcos. com cais e cais. a praia tem alforrecas revestidas de sacos de plástico cigarros pedaços de papel e muitas algas fervendo no caldo macio que é a banheira onde nós. alfarrobas. nos tentamos. há vento de oeste. e a ria foi dragada e o seu fundo ventre profundo vincado pelas pás graves dos abutres. os peixes fugiram. as ovas voaram. o leito deslocado e o canal e o canal. o canal dançando também. tocado por este vento de oeste que tudo leva. este vento que transforma água em fino pó de cianeto e se derrama em cima de nós. alfarrobas dançando sobre as crinas dos cavalos. atolados. com suas finas patas enfiadas num lamaçal de alforrecas. dragado.
e.e.
domingo, setembro 26, 2004
gravidade e antigravidade. ou apenas o referencial. positivo e negativo. o pino e as ondas. um pino tão forte que os seios pendem como diospiros suculentos. tão forte que o sangue jorra numa enxaqueca roçando a areia. um pino tão forte e as ondas. a lua a sugar água. newton aos trambolhões na cova arrojada do seu tempo. ondas espumando-se em baba de cão à beira-mar. ondas arrebitadas como diospiros suculentos acabando em água branca prenha de esperma azulado. gravidade e antigravidade. mas são somente contradições. recordo apenas o cheiro das asas dos cactos cortadas a amarelo frio. recordo o cheiro dos figos de ânus aberto e as formigas escorregando por lá e os castelos os castelos de areia puxados contra a terra. recordo o cheiro. recordo sobretudo aqueles raros grãos espaçados de areia que se colaram à ponta dos dedos quando me atingiu um raio de sol alaranjado e era cheiro e era água e era areia e eram seios encavalitados em ondas magníficas. gravidade ou antigravidade? não importa. eram apenas belos grãos de areia colados em belos seios de diospiro.
e.e.
e.e.
quinta-feira, setembro 23, 2004
Propostas.Ler Devagar
3 Dias para Pablo Neruda
Dia 23 de Setiembre a las 22.00 h, Conferéncia sobre la Obra de PabloNeruda, com Fernando Pinto do Amaral y Miguel Vikeira. Presentación de libros de Poesía y Prosa en Português y Castellano.
Dia 24 de Setiembre a las 22.00 h, Espectáculo de canciones y poesía dePablo Neruda, com Julián del Valle y Rui Meira.
Dia 25 de Setiembre a las 22.00 h, Filme "Ardiente Paciencia", exposición relativa a este filme, con la presencia de su realizador Sr. Henrique Espíritu Santo.
"A Dramaturgia e a Prática Teatral"
No dia 29 de Setembro de 2004 (quarta-feira), pelas 18h30m realiza-se, no Auditório da Sociedade Portuguesa de Autores, a 59ª sessão deste ciclo, dedicada a João Lázaro. Com texto, encenação e representação de João Lázaro, será apresentada a última produção do Te-Ato (grupo-teatro de Leiria) intitulada "Sonho Mau". O dramaturgo, que é também Psicólogo Clínico, pretende que esta sua peça seja "um exercício expressivo, visando reflectir sobre a violência doméstica, sobretudo a que é exercida de modo mais subtil".
Ler Devagar. Rua de São Boaventura, 115. Bairro Alto. Lisboa.
Telefone:21.324.1000 fax:21.325.9994
De 2ª a 5ª das 14 às 24 horas, 5ª a Sábado das 14 às 02 horas, Domingo das 15 às 24 horas
3 Dias para Pablo Neruda
Dia 23 de Setiembre a las 22.00 h, Conferéncia sobre la Obra de PabloNeruda, com Fernando Pinto do Amaral y Miguel Vikeira. Presentación de libros de Poesía y Prosa en Português y Castellano.
Dia 24 de Setiembre a las 22.00 h, Espectáculo de canciones y poesía dePablo Neruda, com Julián del Valle y Rui Meira.
Dia 25 de Setiembre a las 22.00 h, Filme "Ardiente Paciencia", exposición relativa a este filme, con la presencia de su realizador Sr. Henrique Espíritu Santo.
"A Dramaturgia e a Prática Teatral"
No dia 29 de Setembro de 2004 (quarta-feira), pelas 18h30m realiza-se, no Auditório da Sociedade Portuguesa de Autores, a 59ª sessão deste ciclo, dedicada a João Lázaro. Com texto, encenação e representação de João Lázaro, será apresentada a última produção do Te-Ato (grupo-teatro de Leiria) intitulada "Sonho Mau". O dramaturgo, que é também Psicólogo Clínico, pretende que esta sua peça seja "um exercício expressivo, visando reflectir sobre a violência doméstica, sobretudo a que é exercida de modo mais subtil".
Ler Devagar. Rua de São Boaventura, 115. Bairro Alto. Lisboa.
Telefone:21.324.1000 fax:21.325.9994
De 2ª a 5ª das 14 às 24 horas, 5ª a Sábado das 14 às 02 horas, Domingo das 15 às 24 horas
Memórias Deturpadas de Uma Terra Longínqua
Chovia torrencialmente, e o tecto não oferecia protecção suficiente. O chão estava alagado, e eu procurava concentrar-me no som das gotas de água a bater contra a janela, numa tentativa desesperada de adormecer. De súbito, entraram sem bater à porta. Eram palhaços, a dançar no quarto. Ou talvez fossem apenas ratos. Bom, suponhamos que eram ratos vestidos de palhaços; adiante: cantavam aos gritos, numa algazarra nunca antes vista. Já me latejavam os ouvidos, mas por muito que eu tentasse esconder-me sob os cobertores e tapar a cabeça com a almofada, as palavras roucas continuavam a ressoar-me no cérebro.
...Oh bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao!...
Oh, céus! Que coisa aterradora! De onde teria vindo todo aquele entusiasmo súbito? Decidi que o melhor era escapulir-me pelo alçapão que estava escondido por debaixo dos lençóis com desenhos infantis de gatos gigantes. Levantei-o pesadamente e deparei-me com uma série ordenada de degraus. De cabeça baixa para não deixar que o tecto batesse contra ela, lá fui descendo pelas escadas estreitamente enroladas em caracol até chegar às ruas escuras de Riga.
Criaturas fantasmagóricas deambulavam em trajes comunistas, de semblante carregado, perguntando-se talvez como é que conseguiriam voltar a casa. Os cânticos dos ratos palhaços estavam a ficar cada vez mais distantes. Suspirei de alívio; agora, já podia descansar. Resolvi caminhar atrás de um espectro de ar simpático, com um sorriso encantador que reflectia a minha figura desleixada. Fui assim conduzido até uma praça ampla e luminosa, que contrastava com o resto da cidade. No meio da praça estava um palco de madeira tosco e instável, no alto do qual se encontrava uma farta cabeleira loira que se apoiava numa senhora vestida de vermelho. A cabeleira barafustava com gestos exuberantes contra uma série de carros mal estacionados. Ao que parece, estava desesperada com a falta de brio dos condutores. Olhei para a plateia que assistia ao discurso. Eram às centenas, rodeando o palco num semicírculo algo deformado, semelhante a uma lua em quarto crescente, ou até a um sorriso. Contudo, e apesar dos berros estridentes, ninguém parecia prestar muita atenção à cabeleira. Todos os espectadores estavam mais preocupados com o facto de a vodka ter acabado. Lançavam olhares ansiosos à procura de uma garrafa de vidro que tivesse sobrevivido ao genocídio, soltavam suspiros, batiam com os nós dos dedos no queixo, mas ninguém arredava pé dali. Todos sabiam que qualquer pessoa que tentasse desertar seria imediatamente proibida de fazer inversões de marcha durante os próximos 14 meses. O ambiente transbordava sonolência, enfado e impaciência, apenas interrompidos pelas palavras iradas da cabeleira, que cruzavam o ar num rasgão sonoro.
Muito sinceramente, não me apetecia ouvir o resto do discurso. Estava farto de histerismo. O que me apetecia mesmo era perguntar a uma rapariga que estava ao meu lado se ela não quereria tomar um café comigo. Mas ela não falava a minha língua, e para além disso eu sabia que ela nunca iria aceitar, pois tinha de ficar a ouvir o discurso até ao fim. Optei então por me afastar, aproveitando para me misturar com uma debandada de fotógrafos que corria em direcção a um porco voador vestido de freira. Ao vê-los, o porco atirou-lhes uma série de papéis com o número 10 escrito, que escorregaram sob os sapatos dos fotógrafos. Enquanto pernas, números, máquinas fotográficas, cabeças, papéis, cigarros e óculos se transformavam num aglomerado indiferenciado e confuso, o porco gritou com desdém "Viva la figa in Riga! Ten points for you!" e levantou voo em direcção à torre de uma igreja.
Passei por cima da confusão de fotógrafos tentando não pisar nenhum nariz e entrei no elevador mais próximo, que me levou numa subida interminável até ao milésimo andar de um edifício que era vagamente parecido com o Big Ben, visto ao longe e de um ângulo de 67º. À medida que o elevador ascendia, a temperatura ia aumentando estupidamente. Suava por todos os poros, e nuvens de vapor de água saíam das fendas no chão; mas mesmo assim, recusei-me a tirar o casaco. Um termómetro que estava ao lado do painel com mil e um botões indicava 80º centígrados quando cheguei ao andar desejado. Os meus óculos, obviamente, embaciaram. Estava completamente encharcado quando saí do elevador, e não conseguia ver por onde ia. Mas os meus pés sabiam perfeitamente para onde me levavam: procuravam a origem daquela música techno cujo refrão não era mais do que uma repetição automatizada da palavra "Ecstasy", a célebre droga do amor. Deparei-me com uma porta de madeira de proporções gigantescas. Não tinha dúvidas: a música vinha dali.
Dirigi-me para a maçaneta, mas uma velha manca com o cabelo cheio de farinha (ou seria cocaína?) surgiu das sombras e disse-me que aguardasse. Não consegui perceber as palavras que ela proferira, mas o gesto que fez com a mão foi elucidativo. Enquanto esperava, ela agarrou num pequeno objecto cilíndrico e fino que eu não percebi o que era, enfiou-o pela fechadura da porta e, ao olhar para ele, fez sinal para eu entrar. Percebi então do que se tratava: ela estava apenas à espera da temperatura ideal para me dar passagem. Empurrei a porta e dei alguns passos, sentindo um ar gelado a invadir os meus pulmões, que colapsaram sem sequer me pedir licença. Virei-me para trás para tirar uma fotografia à velha, mas ela desaparecera. "Estranho", pensei eu.
Caminhei por um corredor de paredes petrosas com velas instáveis a iluminar o caminho, até atingir um cortinado de veludo roxo. Puxei-o gentilmente para o lado e atravessei-o. Dei por mim numa sala cheia de mafiosos que se embebedavam numa orgia violenta, sorvendo cerveja directamente da torneira dos barris ou lambendo os corpos regados de bálsamo de algumas mulheres que por ali passeavam. Quando a minha presença foi notada, fez-se silêncio. Uma voz feminina chegou ao pé de mim e murmurou-me ao ouvido: "I want you to fuck me right now... Do it! Otherwise, they’ll kill you." Não tinha a mínima hipótese. Perante uma audiência embriagada que me lançava olhares ameaçadores, tive de me despir totalmente e penetrar uma rapariga que eu nem sequer conhecia.
Ela parecia satisfeita e sorriu ternamente, mas eu achei que ia rebentar quando os nossos olhos se cruzaram. Sentia-me terrivelmente envergonhado com o silêncio que nos rodeava e não conseguia pensar, mas algo instintivo e animalesco dentro de mim sabia exactamente o que fazer. Para trás e para diante, aquilo lá se foi desenvolvendo. Não conseguia ver a sua cara a contorcer-se, nem ouvir os seus gemidos, nem sentir o seu corpo a vibrar e a apertar o meu, nem cheirar aquele odor carregado de volúpia e ácida feminilidade. A única coisa que sentia era a minha boca seca, com a língua colada aos dentes. Precisava de líquido urgentemente. Então, murmurei: "Alus." Toda a gente se riu, mas eu insisti e gritei: "Alus, porra! Alguém me dá a puta de uma cerveja?" O bar em peso aplaudia e rejubilava sadicamente a cada palavra minha. Decidi então que o melhor era acabar com aquilo o mais depressa possível, antes que morresse desidratado.
Embalado pelo ritmo marcado pelas palmas da audiência, balancei a minha pelve cada vez mais depressa entre as suas pernas, até ao êxtase final. Soltaram-se gritos de euforia e soaram salvas de tiros de canhão. Consegui finalmente libertar-me, espalhando gotas do fluído esbranquiçado e brilhante pelo chão. Enojado comigo mesmo, vomitei a minha alma de um só jacto e fugi porta fora sem olhar para trás, saltando por cima de arbustos, evitando rochas e pisando enormes poças de lama, até que mergulhei de cabeça num lago escuro e gélido. Respirei de alívio, qual tubarão-martelo lançado de novo à água por um pescador mais compreensivo e conhecedor das coisas do mar. Quando voltei à tona, vi o céu mais belo do que nunca. As estrelas estavam irrequietas, dançando polkas naquele palco escuro sem fim. De quando em vez, uma estrela mais arrojada fazia alguns truques, deixando atrás de si um rasto luminoso e desaparecendo de seguida.
Ali fiquei, de barriga para o ar, não sei durante quanto tempo. Já o dia tinha nascido quando recuperei de novo consciência do meu corpo. Ao contrário da noite anterior, o céu estava limpo e o sol resplandecia. Tive de sair do lago e ir a correr até ao meu quarto; os palhaços já se tinham retirado para as suas tocas, mas cheguei mesmo a tempo de surpreender um insecto gigante que se preparava para abrir a minha garrafa de vinho do Porto. Tive de lhe espetar um pontapé no seu rabo couraçado e proferir uma série de palavrões, mas ele acabou por se retirar, resmungando contra a sua má sorte. Vesti umas roupas quentes e saí de novo, saltando pela janela.
Atravessei a planície verdejante, assobiando o "Grândola Vila Morena", quando me lembrei que não tinha fechado a porta. Perguntei a uma adolescente loira de olhos esverdeados que por ali passava se ela não poderia ir até ao meu quarto e fechar a porta, mas ela disse que tinha de acabar de tratar do seu jardim. Ofereci-me para a ajudar; ela olhou-me de alto a baixo e, torcendo o nariz, respondeu-me que preferia fazê-lo sozinha.
Inexplicavelmente ofendido, virei-lhe as costas e baixei as calças, num gesto pouco digno e até algo patético. Ela riu-se e disse-me que seria melhor esconder as minhas nádegas antes que o pai dela chegasse. Obedeci imediatamente e olhei à volta, com medo de ser surpreendido por algum senhor furioso de ancinho na mão. Ouvi de novo o seu riso; contudo, desta vez era um riso triste, que mais parecia um soluçar. Voltei-me para ela e verifiquei que eram efectivamente lágrimas que lhe corriam pelas bochechas pálidas. Aproximei-me, simultaneamente curioso e aterrado. Ela levantou os olhos, que já não eram verdes mas sim vermelhos, e pediu-me para me ir embora sem me despedir. Percebi imediatamente o que é que ela queria dizer. Eu também nunca gostei de despedidas.
Abraçámo-nos uma última vez, envolvidos pelo silêncio campestre. Quando a soltei, dei dois passos atrás. À medida que tudo se esfumava em bruma e incerteza, não conseguia tirar os olhos dela… porque sabia que nunca mais nos voltaríamos a ver.
Cristóvão Figueiredo
Chovia torrencialmente, e o tecto não oferecia protecção suficiente. O chão estava alagado, e eu procurava concentrar-me no som das gotas de água a bater contra a janela, numa tentativa desesperada de adormecer. De súbito, entraram sem bater à porta. Eram palhaços, a dançar no quarto. Ou talvez fossem apenas ratos. Bom, suponhamos que eram ratos vestidos de palhaços; adiante: cantavam aos gritos, numa algazarra nunca antes vista. Já me latejavam os ouvidos, mas por muito que eu tentasse esconder-me sob os cobertores e tapar a cabeça com a almofada, as palavras roucas continuavam a ressoar-me no cérebro.
...Oh bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao!...
Oh, céus! Que coisa aterradora! De onde teria vindo todo aquele entusiasmo súbito? Decidi que o melhor era escapulir-me pelo alçapão que estava escondido por debaixo dos lençóis com desenhos infantis de gatos gigantes. Levantei-o pesadamente e deparei-me com uma série ordenada de degraus. De cabeça baixa para não deixar que o tecto batesse contra ela, lá fui descendo pelas escadas estreitamente enroladas em caracol até chegar às ruas escuras de Riga.
Criaturas fantasmagóricas deambulavam em trajes comunistas, de semblante carregado, perguntando-se talvez como é que conseguiriam voltar a casa. Os cânticos dos ratos palhaços estavam a ficar cada vez mais distantes. Suspirei de alívio; agora, já podia descansar. Resolvi caminhar atrás de um espectro de ar simpático, com um sorriso encantador que reflectia a minha figura desleixada. Fui assim conduzido até uma praça ampla e luminosa, que contrastava com o resto da cidade. No meio da praça estava um palco de madeira tosco e instável, no alto do qual se encontrava uma farta cabeleira loira que se apoiava numa senhora vestida de vermelho. A cabeleira barafustava com gestos exuberantes contra uma série de carros mal estacionados. Ao que parece, estava desesperada com a falta de brio dos condutores. Olhei para a plateia que assistia ao discurso. Eram às centenas, rodeando o palco num semicírculo algo deformado, semelhante a uma lua em quarto crescente, ou até a um sorriso. Contudo, e apesar dos berros estridentes, ninguém parecia prestar muita atenção à cabeleira. Todos os espectadores estavam mais preocupados com o facto de a vodka ter acabado. Lançavam olhares ansiosos à procura de uma garrafa de vidro que tivesse sobrevivido ao genocídio, soltavam suspiros, batiam com os nós dos dedos no queixo, mas ninguém arredava pé dali. Todos sabiam que qualquer pessoa que tentasse desertar seria imediatamente proibida de fazer inversões de marcha durante os próximos 14 meses. O ambiente transbordava sonolência, enfado e impaciência, apenas interrompidos pelas palavras iradas da cabeleira, que cruzavam o ar num rasgão sonoro.
Muito sinceramente, não me apetecia ouvir o resto do discurso. Estava farto de histerismo. O que me apetecia mesmo era perguntar a uma rapariga que estava ao meu lado se ela não quereria tomar um café comigo. Mas ela não falava a minha língua, e para além disso eu sabia que ela nunca iria aceitar, pois tinha de ficar a ouvir o discurso até ao fim. Optei então por me afastar, aproveitando para me misturar com uma debandada de fotógrafos que corria em direcção a um porco voador vestido de freira. Ao vê-los, o porco atirou-lhes uma série de papéis com o número 10 escrito, que escorregaram sob os sapatos dos fotógrafos. Enquanto pernas, números, máquinas fotográficas, cabeças, papéis, cigarros e óculos se transformavam num aglomerado indiferenciado e confuso, o porco gritou com desdém "Viva la figa in Riga! Ten points for you!" e levantou voo em direcção à torre de uma igreja.
Passei por cima da confusão de fotógrafos tentando não pisar nenhum nariz e entrei no elevador mais próximo, que me levou numa subida interminável até ao milésimo andar de um edifício que era vagamente parecido com o Big Ben, visto ao longe e de um ângulo de 67º. À medida que o elevador ascendia, a temperatura ia aumentando estupidamente. Suava por todos os poros, e nuvens de vapor de água saíam das fendas no chão; mas mesmo assim, recusei-me a tirar o casaco. Um termómetro que estava ao lado do painel com mil e um botões indicava 80º centígrados quando cheguei ao andar desejado. Os meus óculos, obviamente, embaciaram. Estava completamente encharcado quando saí do elevador, e não conseguia ver por onde ia. Mas os meus pés sabiam perfeitamente para onde me levavam: procuravam a origem daquela música techno cujo refrão não era mais do que uma repetição automatizada da palavra "Ecstasy", a célebre droga do amor. Deparei-me com uma porta de madeira de proporções gigantescas. Não tinha dúvidas: a música vinha dali.
Dirigi-me para a maçaneta, mas uma velha manca com o cabelo cheio de farinha (ou seria cocaína?) surgiu das sombras e disse-me que aguardasse. Não consegui perceber as palavras que ela proferira, mas o gesto que fez com a mão foi elucidativo. Enquanto esperava, ela agarrou num pequeno objecto cilíndrico e fino que eu não percebi o que era, enfiou-o pela fechadura da porta e, ao olhar para ele, fez sinal para eu entrar. Percebi então do que se tratava: ela estava apenas à espera da temperatura ideal para me dar passagem. Empurrei a porta e dei alguns passos, sentindo um ar gelado a invadir os meus pulmões, que colapsaram sem sequer me pedir licença. Virei-me para trás para tirar uma fotografia à velha, mas ela desaparecera. "Estranho", pensei eu.
Caminhei por um corredor de paredes petrosas com velas instáveis a iluminar o caminho, até atingir um cortinado de veludo roxo. Puxei-o gentilmente para o lado e atravessei-o. Dei por mim numa sala cheia de mafiosos que se embebedavam numa orgia violenta, sorvendo cerveja directamente da torneira dos barris ou lambendo os corpos regados de bálsamo de algumas mulheres que por ali passeavam. Quando a minha presença foi notada, fez-se silêncio. Uma voz feminina chegou ao pé de mim e murmurou-me ao ouvido: "I want you to fuck me right now... Do it! Otherwise, they’ll kill you." Não tinha a mínima hipótese. Perante uma audiência embriagada que me lançava olhares ameaçadores, tive de me despir totalmente e penetrar uma rapariga que eu nem sequer conhecia.
Ela parecia satisfeita e sorriu ternamente, mas eu achei que ia rebentar quando os nossos olhos se cruzaram. Sentia-me terrivelmente envergonhado com o silêncio que nos rodeava e não conseguia pensar, mas algo instintivo e animalesco dentro de mim sabia exactamente o que fazer. Para trás e para diante, aquilo lá se foi desenvolvendo. Não conseguia ver a sua cara a contorcer-se, nem ouvir os seus gemidos, nem sentir o seu corpo a vibrar e a apertar o meu, nem cheirar aquele odor carregado de volúpia e ácida feminilidade. A única coisa que sentia era a minha boca seca, com a língua colada aos dentes. Precisava de líquido urgentemente. Então, murmurei: "Alus." Toda a gente se riu, mas eu insisti e gritei: "Alus, porra! Alguém me dá a puta de uma cerveja?" O bar em peso aplaudia e rejubilava sadicamente a cada palavra minha. Decidi então que o melhor era acabar com aquilo o mais depressa possível, antes que morresse desidratado.
Embalado pelo ritmo marcado pelas palmas da audiência, balancei a minha pelve cada vez mais depressa entre as suas pernas, até ao êxtase final. Soltaram-se gritos de euforia e soaram salvas de tiros de canhão. Consegui finalmente libertar-me, espalhando gotas do fluído esbranquiçado e brilhante pelo chão. Enojado comigo mesmo, vomitei a minha alma de um só jacto e fugi porta fora sem olhar para trás, saltando por cima de arbustos, evitando rochas e pisando enormes poças de lama, até que mergulhei de cabeça num lago escuro e gélido. Respirei de alívio, qual tubarão-martelo lançado de novo à água por um pescador mais compreensivo e conhecedor das coisas do mar. Quando voltei à tona, vi o céu mais belo do que nunca. As estrelas estavam irrequietas, dançando polkas naquele palco escuro sem fim. De quando em vez, uma estrela mais arrojada fazia alguns truques, deixando atrás de si um rasto luminoso e desaparecendo de seguida.
Ali fiquei, de barriga para o ar, não sei durante quanto tempo. Já o dia tinha nascido quando recuperei de novo consciência do meu corpo. Ao contrário da noite anterior, o céu estava limpo e o sol resplandecia. Tive de sair do lago e ir a correr até ao meu quarto; os palhaços já se tinham retirado para as suas tocas, mas cheguei mesmo a tempo de surpreender um insecto gigante que se preparava para abrir a minha garrafa de vinho do Porto. Tive de lhe espetar um pontapé no seu rabo couraçado e proferir uma série de palavrões, mas ele acabou por se retirar, resmungando contra a sua má sorte. Vesti umas roupas quentes e saí de novo, saltando pela janela.
Atravessei a planície verdejante, assobiando o "Grândola Vila Morena", quando me lembrei que não tinha fechado a porta. Perguntei a uma adolescente loira de olhos esverdeados que por ali passava se ela não poderia ir até ao meu quarto e fechar a porta, mas ela disse que tinha de acabar de tratar do seu jardim. Ofereci-me para a ajudar; ela olhou-me de alto a baixo e, torcendo o nariz, respondeu-me que preferia fazê-lo sozinha.
Inexplicavelmente ofendido, virei-lhe as costas e baixei as calças, num gesto pouco digno e até algo patético. Ela riu-se e disse-me que seria melhor esconder as minhas nádegas antes que o pai dela chegasse. Obedeci imediatamente e olhei à volta, com medo de ser surpreendido por algum senhor furioso de ancinho na mão. Ouvi de novo o seu riso; contudo, desta vez era um riso triste, que mais parecia um soluçar. Voltei-me para ela e verifiquei que eram efectivamente lágrimas que lhe corriam pelas bochechas pálidas. Aproximei-me, simultaneamente curioso e aterrado. Ela levantou os olhos, que já não eram verdes mas sim vermelhos, e pediu-me para me ir embora sem me despedir. Percebi imediatamente o que é que ela queria dizer. Eu também nunca gostei de despedidas.
Abraçámo-nos uma última vez, envolvidos pelo silêncio campestre. Quando a soltei, dei dois passos atrás. À medida que tudo se esfumava em bruma e incerteza, não conseguia tirar os olhos dela… porque sabia que nunca mais nos voltaríamos a ver.
Cristóvão Figueiredo
quarta-feira, setembro 22, 2004
primeiro vieram os fenícios. focinharam uma igreja. depois vieram os mouros. continuaram os ainda não portugueses. guerra. a igreja desabou em parte. nova construção. sobejaram pedaços de fenícios e mouros. houve gótico. houve o mestre de obras do Mosteiro dos Jerónimos a acrescentar os seus rendilhados de calcário. renascimento. mais tarde reconstrução. houve fenícios. houve mouros. ante portugueses. houve a maldita História. e aqui este facho a iluminá-la. houve fenícios. houve mouros. e este facho ávido de gasolina vítrea para destruir tanto palavreado de pedra.
e.e.
e.e.
Implosão
as cabeças de trigo
entrelaçadas num novelo de silêncio
ventoso
um silêncio cheio de vontade
que o agitem que o animem
que o reanimem com soro dinamicamente estático
os alfinetes de cevada
focados no nevoeiro de neve manchada
um nevoeiro sedento de sonho
que seduz que transporta
que propaga o ataque cardíaco
em segundos
as cabeças de trigo
os alfinetes de cevada
e uma grande ferradura
de papa espessa
que atravessa a garganta
e a aperta e sufoca
como um edifício titânico
implodindo
(serenamente)
convulso
Álvaro Seiça Neves
(a partir de Paisagens do Silêncio, Renato Roque e Jorge Sousa Braga, 2004.)
as cabeças de trigo
entrelaçadas num novelo de silêncio
ventoso
um silêncio cheio de vontade
que o agitem que o animem
que o reanimem com soro dinamicamente estático
os alfinetes de cevada
focados no nevoeiro de neve manchada
um nevoeiro sedento de sonho
que seduz que transporta
que propaga o ataque cardíaco
em segundos
as cabeças de trigo
os alfinetes de cevada
e uma grande ferradura
de papa espessa
que atravessa a garganta
e a aperta e sufoca
como um edifício titânico
implodindo
(serenamente)
convulso
Álvaro Seiça Neves
(a partir de Paisagens do Silêncio, Renato Roque e Jorge Sousa Braga, 2004.)
domingo, setembro 19, 2004
FOME
UM DIA SENTEI-VOS DENTRO DE MIM
E DISSE: - TENHO FOME!
- TENHO FOME!
E DENTRO DA MINHA FOME ENCONTREI O AMOR:
O AMOR QUE, NÃO SEI PORQUÊ, TENHO REJEITADO
EM CADA UM DOS MEUS DIAS...
SINTO-ME INVADIDO POR UMA PROFUNDA DÍVIDA:
QUERO DAR!
TENHO UMA PROFUNDA NECESSIDADE DE DAR!
SINTO-ME SÓ:
NA LUZ QUE NÃO TRAGO,
NAS MÃOS QUE NADA POSSUEM,
DOS CORAÇÕES EM QUE NÃO ENTRO...
QUERO DAR:
PARA TODOS QUERO SER A SALVAÇÃO QUE NÃO SOU PARA MIM.
POSSO SER JÁ E AQUI: OU POSSO CONTINUAR A SER ESTE ANO!
UM NOIVADO, UM FUNERAL...
NÃO IMPORTA!
SÓ IMPORTA ESTA NECESSIDADE DE ME PARTILHAR!
SOU QUASE O MENDIGO CUJA MÃO FICOU, SÓ A MÃO FICOU...
TENHO FOME!
TENHO FOME DE ESPALHAR ESTA FOME!
ACREDITO ASSIM INAUGURAR-ME...
- MAS EU JÁ TENHO TUDO. DISSESTE.
MAS NÃO ERA ISSO...
EXPLIQUEI-TE ENTÃO A MINHA FOME.
EU QUERO DAR!
NÃO IMPORTA O QUÊ.
NÃO IMPORTA A QUEM.
SENTASTE-TE ENTÃO AO MEU LADO...
E TIVESTE FOME COMIGO.
in 27, Fotonovelas Poéticas, Ex-Ricardo dePinho Teixeira, Corpos Editora, 2004.
UM DIA SENTEI-VOS DENTRO DE MIM
E DISSE: - TENHO FOME!
- TENHO FOME!
E DENTRO DA MINHA FOME ENCONTREI O AMOR:
O AMOR QUE, NÃO SEI PORQUÊ, TENHO REJEITADO
EM CADA UM DOS MEUS DIAS...
SINTO-ME INVADIDO POR UMA PROFUNDA DÍVIDA:
QUERO DAR!
TENHO UMA PROFUNDA NECESSIDADE DE DAR!
SINTO-ME SÓ:
NA LUZ QUE NÃO TRAGO,
NAS MÃOS QUE NADA POSSUEM,
DOS CORAÇÕES EM QUE NÃO ENTRO...
QUERO DAR:
PARA TODOS QUERO SER A SALVAÇÃO QUE NÃO SOU PARA MIM.
POSSO SER JÁ E AQUI: OU POSSO CONTINUAR A SER ESTE ANO!
UM NOIVADO, UM FUNERAL...
NÃO IMPORTA!
SÓ IMPORTA ESTA NECESSIDADE DE ME PARTILHAR!
SOU QUASE O MENDIGO CUJA MÃO FICOU, SÓ A MÃO FICOU...
TENHO FOME!
TENHO FOME DE ESPALHAR ESTA FOME!
ACREDITO ASSIM INAUGURAR-ME...
- MAS EU JÁ TENHO TUDO. DISSESTE.
MAS NÃO ERA ISSO...
EXPLIQUEI-TE ENTÃO A MINHA FOME.
EU QUERO DAR!
NÃO IMPORTA O QUÊ.
NÃO IMPORTA A QUEM.
SENTASTE-TE ENTÃO AO MEU LADO...
E TIVESTE FOME COMIGO.
in 27, Fotonovelas Poéticas, Ex-Ricardo dePinho Teixeira, Corpos Editora, 2004.
quinta-feira, setembro 16, 2004
sete dedos de mão
pensei em degolar sete dedos de mão. quatro da esquerda. três da direita. aleatoriamente. sete dedos de mão. tinha essa folha branca espaçosa debaixo dos olhos. ainda bem. não estaria agora aqui. não nestas letras. letras que enchiam os olhos na altura. não estaria agora aqui. estaria antes. estaria antes. estaria antes com os olhos degolados. sem letras. sem presente. só recordação de sete dedos de mão. sete letras vivas. muitas letras agora. amo-te mão. amo-te olhos. percebi que tudo não deixa de ser instante. tudo que julgamos presente e num segundo se desfaz. amo-te palavras. amo-te dedos.
e.e.
pensei em degolar sete dedos de mão. quatro da esquerda. três da direita. aleatoriamente. sete dedos de mão. tinha essa folha branca espaçosa debaixo dos olhos. ainda bem. não estaria agora aqui. não nestas letras. letras que enchiam os olhos na altura. não estaria agora aqui. estaria antes. estaria antes. estaria antes com os olhos degolados. sem letras. sem presente. só recordação de sete dedos de mão. sete letras vivas. muitas letras agora. amo-te mão. amo-te olhos. percebi que tudo não deixa de ser instante. tudo que julgamos presente e num segundo se desfaz. amo-te palavras. amo-te dedos.
e.e.
terça-feira, setembro 07, 2004
O sangue bombardeou-me a cabeça. Senti uma massa pesada, hoje. Foi quando espreitei para debaixo da cama, de tronco abandonado. Olhei e o fundo pareceu-me um grande e leve céu estrelado, tantas eram as penas que ali repousavam.
No limiar perscrutei, talvez, o sonho distante que todas as noites me vigia, escondendo-se, disforme, na sepultura do meu corpo.
e.e.
No limiar perscrutei, talvez, o sonho distante que todas as noites me vigia, escondendo-se, disforme, na sepultura do meu corpo.
e.e.
quarta-feira, julho 28, 2004
Amoródio
Coimbra não me deixou saudades. Mas tenho de admitir que é uma cidade muito intrigante. Parece ter o dom de absorver aqueles que lá entram, manipulando-lhes a mente e obrigando-os a seguir as suas regras, a gostar de si. Os que se recusam a obedecer-lhe são postos de parte. Este extremismo só pode ser devido aos que a sustentam a cidade que encerra D. Afonso Henriques, com uma devoção febril que roça o fanatismo.
Ao entrar em Coimbra é impossível deixar de sentir a aura que a rodeia, delimitando a fronteira entre ela e o mundo. Em criança, lembro-me de penetrar neste local, deixando-me uma sensação ambígua de simultâneo mal-estar e segurança. Veja-se que as minhas idas a Coimbra enquanto criança estavam sempre associadas a entradas de urgência no Hospital Pediátrico, pelo que talvez este sentimento faça sentido anamneticamente falando. Afinal, eu sempre entrei em Coimbra em sofrimento e saí de lá novamente confortável comigo mesmo.
E isso sempre me acompanhou. Só assim se pode compreender o sentimento opressivo e desconfortável que senti ao chegar a Coimbra para o meu primeiro dia de Faculdade e da minha felicidade ao voltar para Leiria. A minha relação de amoródio com a cidade que vive de estudantes começou muito antes de eu me aperceber disso.
Aliás, reflectindo no que disse atrás, não creio que ao regressar a Leiria eu estivesse feliz por voltar ao lar. Eu estava era aliviado por sair de Coimbra. Torna-se agora óbvio, perante todos os sentimentos contraditórios que surgiram durante a minha estadia em Coimbra, que eu nunca poderia sentir-me bem naquele local, rodeado daquela gente. Estava condenado a entrar em conflito comigo mesmo, numa disputa algo esquizofrénica entre a minha repulsa atractiva e a minha atracção repulsiva por esta entidade.
Nunca duvidei, desde que lá entrei pela primeira vez, que o meu lugar não era ali. Sempre o soube, apesar de tentar convencer-me a mim mesmo do contrário. Cada vez que me vergava perante o seu poder, tentando submeter-me às suas regras e caprichos, a cidade ria-se do meu esforço patético de integração. Não tinha qualquer problema em espancar-me de forma humilhante, deixando-me debilitado e incapaz de raciocinar, imaginar, viver. Tempos estranhos, aqueles…
Agora, torna-se um pouco mais fácil passar em Coimbra. Mas não sei se alguma vez conseguirei exorcizar as marcas das feridas que essa prostituta requintada pseudo-intelectual provocou no meu eu. Muito provavelmente, não. Afinal, tu és o meu amoródio. E tens mais encanto na hora da despedida.
Ramona
Coimbra não me deixou saudades. Mas tenho de admitir que é uma cidade muito intrigante. Parece ter o dom de absorver aqueles que lá entram, manipulando-lhes a mente e obrigando-os a seguir as suas regras, a gostar de si. Os que se recusam a obedecer-lhe são postos de parte. Este extremismo só pode ser devido aos que a sustentam a cidade que encerra D. Afonso Henriques, com uma devoção febril que roça o fanatismo.
Ao entrar em Coimbra é impossível deixar de sentir a aura que a rodeia, delimitando a fronteira entre ela e o mundo. Em criança, lembro-me de penetrar neste local, deixando-me uma sensação ambígua de simultâneo mal-estar e segurança. Veja-se que as minhas idas a Coimbra enquanto criança estavam sempre associadas a entradas de urgência no Hospital Pediátrico, pelo que talvez este sentimento faça sentido anamneticamente falando. Afinal, eu sempre entrei em Coimbra em sofrimento e saí de lá novamente confortável comigo mesmo.
E isso sempre me acompanhou. Só assim se pode compreender o sentimento opressivo e desconfortável que senti ao chegar a Coimbra para o meu primeiro dia de Faculdade e da minha felicidade ao voltar para Leiria. A minha relação de amoródio com a cidade que vive de estudantes começou muito antes de eu me aperceber disso.
Aliás, reflectindo no que disse atrás, não creio que ao regressar a Leiria eu estivesse feliz por voltar ao lar. Eu estava era aliviado por sair de Coimbra. Torna-se agora óbvio, perante todos os sentimentos contraditórios que surgiram durante a minha estadia em Coimbra, que eu nunca poderia sentir-me bem naquele local, rodeado daquela gente. Estava condenado a entrar em conflito comigo mesmo, numa disputa algo esquizofrénica entre a minha repulsa atractiva e a minha atracção repulsiva por esta entidade.
Nunca duvidei, desde que lá entrei pela primeira vez, que o meu lugar não era ali. Sempre o soube, apesar de tentar convencer-me a mim mesmo do contrário. Cada vez que me vergava perante o seu poder, tentando submeter-me às suas regras e caprichos, a cidade ria-se do meu esforço patético de integração. Não tinha qualquer problema em espancar-me de forma humilhante, deixando-me debilitado e incapaz de raciocinar, imaginar, viver. Tempos estranhos, aqueles…
Agora, torna-se um pouco mais fácil passar em Coimbra. Mas não sei se alguma vez conseguirei exorcizar as marcas das feridas que essa prostituta requintada pseudo-intelectual provocou no meu eu. Muito provavelmente, não. Afinal, tu és o meu amoródio. E tens mais encanto na hora da despedida.
Ramona
quinta-feira, julho 15, 2004
quinta-feira, junho 17, 2004
segunda-feira, junho 14, 2004
Sémengrafia
lado
a
lado
conversavam
dois fotógrafos crespos no final do dia.
os dois coçavam as faces
faces de escroto
esbranquiçadas e pálidas.
na pele de galinha depenada
afloravam vasos sanguíneos finíssimos
faces de escroto
com uns rebentos de barba.
onde
a
onde
os tubérculos afloravam.
lado
a
lado
com as máquinas coladas
conversavam.
e
num espasmo horizontal
duas lágrimas de sémen
tocaram-se
quando as duas máquinas
erectas
se beijaram.
ASN
lado
a
lado
conversavam
dois fotógrafos crespos no final do dia.
os dois coçavam as faces
faces de escroto
esbranquiçadas e pálidas.
na pele de galinha depenada
afloravam vasos sanguíneos finíssimos
faces de escroto
com uns rebentos de barba.
onde
a
onde
os tubérculos afloravam.
lado
a
lado
com as máquinas coladas
conversavam.
e
num espasmo horizontal
duas lágrimas de sémen
tocaram-se
quando as duas máquinas
erectas
se beijaram.
ASN
segunda-feira, maio 31, 2004
Mutação
entra no corredor frigorífico
o outro corpo talvez
espero cá fora. com receio.
há avisos de claustrofobia náuseas
pesadelos brancos.
há avisos. espero cá fora.
o outro corpo percorre os plásticos
cristalizados.
surpreende-o o nevoeiro imposto
as vozes difusas da manhã
o alvoroço mudo da madrugada.
desintegra-se em partículas
de plasma humedecido
e injecta-se de vazio frio.
no calor da descoberta
respira. respira subatomicamente
e caminha.
observa uma luz exterior que se projecta nos confins do espaço.
e caminha. perde as referências.
os seus outros amantes dispersam-se.
vestidos de preto perdem-se estonteados
no horizonte branco.
perdem-se. perde-se. estonteado.
e caminha
respirando um doce pó de amianto.
magnetizado pela bruma fecha os olhos.
abre-os num ímpeto claro
com as retinas coladas ao vidro.
o exterior é o seu interior
e nisto
perde-se novamente.
a bruma é denso pensamento.
tempo retido na aurora.
controlada a fobia branca
encolhe-se para a saída.
mas a sala ilimitada dispara
e é metralhado por um silêncio
gritante.
flashes ambíguos retalhados
de espuma. agonia esparsa
que se multiplica na espiral escura
dos seus olhos fechados. agonia. intermitente.
respira o passado sobreposto
e ali parado deixa-se engasgar
pelos cristais estroboscópicos
e costura uma passagem interior
soluçando tempo
e sente-se como uma mosca
dentro de uma lâmpada de néon.
despe o terror confuso de estar
na lama escorregadia do passado
e atira-se
qual fera enjaulada
para a porta final.
cá fora espero-o.
há avisos e pesadelos brancos
em convalescência.
vejo-o contra o vidro e grito.
nesse momento recordo
como uma cassete a rebobinar
toda a viagem que descrevi.
acordo estatelado frente à sala.
o caminho é mutação.
respiro triunfante a unidade.
o outro corpo talvez
uniu-se a mim.
cá fora sou condicionado e orgânico
mas sei
agora
que o meu interior é experiência sem fim.
Álvaro Seiça Neves
(A partir de Dazed & Confused, João Paulo Feliciano, 2004.)
entra no corredor frigorífico
o outro corpo talvez
espero cá fora. com receio.
há avisos de claustrofobia náuseas
pesadelos brancos.
há avisos. espero cá fora.
o outro corpo percorre os plásticos
cristalizados.
surpreende-o o nevoeiro imposto
as vozes difusas da manhã
o alvoroço mudo da madrugada.
desintegra-se em partículas
de plasma humedecido
e injecta-se de vazio frio.
no calor da descoberta
respira. respira subatomicamente
e caminha.
observa uma luz exterior que se projecta nos confins do espaço.
e caminha. perde as referências.
os seus outros amantes dispersam-se.
vestidos de preto perdem-se estonteados
no horizonte branco.
perdem-se. perde-se. estonteado.
e caminha
respirando um doce pó de amianto.
magnetizado pela bruma fecha os olhos.
abre-os num ímpeto claro
com as retinas coladas ao vidro.
o exterior é o seu interior
e nisto
perde-se novamente.
a bruma é denso pensamento.
tempo retido na aurora.
controlada a fobia branca
encolhe-se para a saída.
mas a sala ilimitada dispara
e é metralhado por um silêncio
gritante.
flashes ambíguos retalhados
de espuma. agonia esparsa
que se multiplica na espiral escura
dos seus olhos fechados. agonia. intermitente.
respira o passado sobreposto
e ali parado deixa-se engasgar
pelos cristais estroboscópicos
e costura uma passagem interior
soluçando tempo
e sente-se como uma mosca
dentro de uma lâmpada de néon.
despe o terror confuso de estar
na lama escorregadia do passado
e atira-se
qual fera enjaulada
para a porta final.
cá fora espero-o.
há avisos e pesadelos brancos
em convalescência.
vejo-o contra o vidro e grito.
nesse momento recordo
como uma cassete a rebobinar
toda a viagem que descrevi.
acordo estatelado frente à sala.
o caminho é mutação.
respiro triunfante a unidade.
o outro corpo talvez
uniu-se a mim.
cá fora sou condicionado e orgânico
mas sei
agora
que o meu interior é experiência sem fim.
Álvaro Seiça Neves
(A partir de Dazed & Confused, João Paulo Feliciano, 2004.)
segunda-feira, maio 24, 2004
Polegar
Agora que olhava para a sua mão como uma revelação já esquecida, arrepiava-se.
O seu polegar era mínimo. Feio. Movimentava-se com uma disciplina autónoma, como se a consciência morasse ali. Lembrou-se daquela cantaroleta da falange, falanginha, falangeta. Coisa de médico, mnemónica, pois.
A unha encrostava-se numa cabeça larga, semelhante à sua glande, com o prepúcio delgado. Logo a seguir à articulação, um curto troço reduzia a falanginha. A falange enterrava-se no gomo muscular da mão. Olhava para o seu polegar e arrepiava-se.
Crescera não um dedo comum mas sim um pénis atrofiado e balbuciante. Para seu desespero, trazia cravada na mão a sua identidade masculina. Não existia intimidade. Ele era um corpo nu, apesar de vestido.
Olhou mais uma vez e chorou a exposição erecta da sua impaciência. Ao mesmo tempo, o polegar regurgitou e sorriu-lhe, sarcasticamente.
e.e.
Agora que olhava para a sua mão como uma revelação já esquecida, arrepiava-se.
O seu polegar era mínimo. Feio. Movimentava-se com uma disciplina autónoma, como se a consciência morasse ali. Lembrou-se daquela cantaroleta da falange, falanginha, falangeta. Coisa de médico, mnemónica, pois.
A unha encrostava-se numa cabeça larga, semelhante à sua glande, com o prepúcio delgado. Logo a seguir à articulação, um curto troço reduzia a falanginha. A falange enterrava-se no gomo muscular da mão. Olhava para o seu polegar e arrepiava-se.
Crescera não um dedo comum mas sim um pénis atrofiado e balbuciante. Para seu desespero, trazia cravada na mão a sua identidade masculina. Não existia intimidade. Ele era um corpo nu, apesar de vestido.
Olhou mais uma vez e chorou a exposição erecta da sua impaciência. Ao mesmo tempo, o polegar regurgitou e sorriu-lhe, sarcasticamente.
e.e.
quinta-feira, maio 20, 2004
Nova Esquizofrenia Contemporânea - LINGUISTAS
Imaginem que dividisse a palavra amor em morfemas. A cada um lhes daria novas significações. Reparem como a palavra já irremediavelmente gasta morre e renasce como um signo puramente fechado num mundo paralelo. Um morto vivo linguístico. Ao morfema r corresponderá vos, ao morfema o um hífen. Digo que ao morfema restante corresponderá a forma verbal flexionada fodei. Não, queiram desculpar, senhores, mas não há motivo para ofensas nem há causa para qualquer alarme. É algo de meramente linguístico. Sentai-vos linguisticamente, por Saussure!, e reparem como faço dançar esse novo aborto semântico: amor amor amor amor. O mesmo seria dizer-se: fodei-vos fodei-vos fodei-vos fodei-vos. Interessante, não? É um pequeno novo facto de linguagem. Muito pequenino, concedo-vos. Mas talvez as maiores revoluções nunca sejam muito grandes, meus senhores.
(...)
Amor [Fodei-vos], [inserir o nome da pessoa amada]!
É amor [fodei-vos] o que vos digo em mui grã coita minha!
Pois que amor [fodei-vos] é sentimento fidalgo!
Eu, sôfrego, que vos canto – amor [fodei-vos]!
(...)
(variante de protótipo de Cancioneiro do séc. XIV - fragmento)
Reparem como a tradição se rescreve metalinguisticamente. Uma palavra moribunda arrastada pelos séculos fora pode sempre renascer, como a fénix imemorial.
Meus senhores, e se eu dissesse que a palavra morte significa cabrões? Imaginem os efeitos retroactivos. Pensem agora em todo o Romantismo Europeu, em todo aquele sofrimento inútil – como se torna em algo dinâmico. Não se trata meramente de manipular os mortos pela História fora, não é esse o caso. Não. É antes chamar-lhes de cabrões.
Concordo com os senhores, talvez seja simplesmente um terrível mau gosto.
Amor Morte! – Fodei-vos Cabrões!
Mas concordem comigo nisto, por favor: concordem que a língua morreu. Eu próprio desespero em busca daquele sopro próprio e individual com que dissecar solitariamente o meu cérebro. Por vezes, a lentidão dos séculos entranha-se-me talmente que tudo se reduz a um único grito pelo meio da poeira. Pelas veredas mais recônditas, parte do meu ser grunhe – mas a tradição é maquinal, não se impressiona com casinhotas de lama e pés de porco segurando estiletes. Não será com um transplante bovino que se salvará o cérebro do Poeta no novo século.
Fodei-vos Cabrões!
Mau gosto, senhores. Terrível mau gosto.
Bruno Ribeiro de Almeida
Imaginem que dividisse a palavra amor em morfemas. A cada um lhes daria novas significações. Reparem como a palavra já irremediavelmente gasta morre e renasce como um signo puramente fechado num mundo paralelo. Um morto vivo linguístico. Ao morfema r corresponderá vos, ao morfema o um hífen. Digo que ao morfema restante corresponderá a forma verbal flexionada fodei. Não, queiram desculpar, senhores, mas não há motivo para ofensas nem há causa para qualquer alarme. É algo de meramente linguístico. Sentai-vos linguisticamente, por Saussure!, e reparem como faço dançar esse novo aborto semântico: amor amor amor amor. O mesmo seria dizer-se: fodei-vos fodei-vos fodei-vos fodei-vos. Interessante, não? É um pequeno novo facto de linguagem. Muito pequenino, concedo-vos. Mas talvez as maiores revoluções nunca sejam muito grandes, meus senhores.
(...)
Amor [Fodei-vos], [inserir o nome da pessoa amada]!
É amor [fodei-vos] o que vos digo em mui grã coita minha!
Pois que amor [fodei-vos] é sentimento fidalgo!
Eu, sôfrego, que vos canto – amor [fodei-vos]!
(...)
(variante de protótipo de Cancioneiro do séc. XIV - fragmento)
Reparem como a tradição se rescreve metalinguisticamente. Uma palavra moribunda arrastada pelos séculos fora pode sempre renascer, como a fénix imemorial.
Meus senhores, e se eu dissesse que a palavra morte significa cabrões? Imaginem os efeitos retroactivos. Pensem agora em todo o Romantismo Europeu, em todo aquele sofrimento inútil – como se torna em algo dinâmico. Não se trata meramente de manipular os mortos pela História fora, não é esse o caso. Não. É antes chamar-lhes de cabrões.
Concordo com os senhores, talvez seja simplesmente um terrível mau gosto.
Amor Morte! – Fodei-vos Cabrões!
Mas concordem comigo nisto, por favor: concordem que a língua morreu. Eu próprio desespero em busca daquele sopro próprio e individual com que dissecar solitariamente o meu cérebro. Por vezes, a lentidão dos séculos entranha-se-me talmente que tudo se reduz a um único grito pelo meio da poeira. Pelas veredas mais recônditas, parte do meu ser grunhe – mas a tradição é maquinal, não se impressiona com casinhotas de lama e pés de porco segurando estiletes. Não será com um transplante bovino que se salvará o cérebro do Poeta no novo século.
Fodei-vos Cabrões!
Mau gosto, senhores. Terrível mau gosto.
Bruno Ribeiro de Almeida
terça-feira, maio 18, 2004
Teatro Infantil - Um Dia na Vida de uma Criança
Teatro Ibérico, Rua de Xabregas, 5, Lisboa
com: Céu Neves, Dulce Marques, Joana Lourenço, Rita Santos, Sérgio Velhinho, André Almeida
Maio: sábados e domingos às 11,00 horas
Reservas: 218682531 / 218128528
ditirambus@netcabo.pt
http://www.ditirambus.com
Pedro Sousa
Teatro Ibérico, Rua de Xabregas, 5, Lisboa
com: Céu Neves, Dulce Marques, Joana Lourenço, Rita Santos, Sérgio Velhinho, André Almeida
Maio: sábados e domingos às 11,00 horas
Reservas: 218682531 / 218128528
ditirambus@netcabo.pt
http://www.ditirambus.com
Pedro Sousa
quinta-feira, maio 13, 2004
quarta-feira, maio 05, 2004
2º Festival de Música
Escola Superior de Música de Lisboa
Teatro Municipal de São Luiz
Caros amigos e colegas,
Nos próximos dias 3 a 9 de Maio, no Jardim de Inverno do Teatro Municipal de São Luiz, numa iniciativa dos alunos da Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), ira decorrer o 2: Festival de Música da ESML. A entrada é gratuita.
Uma verdadeira maratona de música clássica!
Mais de 60 peças ao longo de 20 concertos.
Britten, Bernstein, Leo Brower, Hindemith, Stravinski, Ravel, Ligeti, Eurico Carrapatoso, Vitorino d'Almeida, entre tantos outros!
Com especial destaque para algumas das várias peças em estreia absoluta:
Lampoons - Prof. Christopher Bochmann
Pelos Campos Fora - Suite Campestre - Prof. Sérgio Azevedo
Três Miniaturas - Luís Cardoso*
*(Luís Cardoso foi vencedor do prémio ESMAE/ Casa da Música/ Remix em 2003)
e ainda um dia dedicado à Música Antiga, (no Centro de Estudos Judiciários em Lisboa) onde se incluirão peças de Carlos Seixas, no âmbito do tricentenário do seu nascimento.
No dia 5 de Maio, 4ªfeira, Dia da Escola Superior de Música de Lisboa, está ainda prevista uma homenagem à pianista Olga Prats, directora artística deste festival.
PROGRAMAÇÃO DETALHADA EM:
http://www.esm.ipl.pt/Activ/festivalESML2004.htm
Neste festival actuarão alunos desta instituição, desde o 1º ao 4º ano, das classes de instrumento e coro de câmara e ainda um grupo de convidados especiais vindos de Leipzig. Além do vasto repertório, poderemos ainda escutar diversas obras de alunos e professores do curso de composição.
Uma oportunidade para conhecer o que nos promete esta nova geração de músicos.
Os alunos da ESML gostariam de poder contar convosco na divulgação deste evento. A entrada é gratuita! Apareça também!
Obrigado.
Pedro Sousa
Escola Superior de Música de Lisboa
Teatro Municipal de São Luiz
Caros amigos e colegas,
Nos próximos dias 3 a 9 de Maio, no Jardim de Inverno do Teatro Municipal de São Luiz, numa iniciativa dos alunos da Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), ira decorrer o 2: Festival de Música da ESML. A entrada é gratuita.
Uma verdadeira maratona de música clássica!
Mais de 60 peças ao longo de 20 concertos.
Britten, Bernstein, Leo Brower, Hindemith, Stravinski, Ravel, Ligeti, Eurico Carrapatoso, Vitorino d'Almeida, entre tantos outros!
Com especial destaque para algumas das várias peças em estreia absoluta:
Lampoons - Prof. Christopher Bochmann
Pelos Campos Fora - Suite Campestre - Prof. Sérgio Azevedo
Três Miniaturas - Luís Cardoso*
*(Luís Cardoso foi vencedor do prémio ESMAE/ Casa da Música/ Remix em 2003)
e ainda um dia dedicado à Música Antiga, (no Centro de Estudos Judiciários em Lisboa) onde se incluirão peças de Carlos Seixas, no âmbito do tricentenário do seu nascimento.
No dia 5 de Maio, 4ªfeira, Dia da Escola Superior de Música de Lisboa, está ainda prevista uma homenagem à pianista Olga Prats, directora artística deste festival.
PROGRAMAÇÃO DETALHADA EM:
http://www.esm.ipl.pt/Activ/festivalESML2004.htm
Neste festival actuarão alunos desta instituição, desde o 1º ao 4º ano, das classes de instrumento e coro de câmara e ainda um grupo de convidados especiais vindos de Leipzig. Além do vasto repertório, poderemos ainda escutar diversas obras de alunos e professores do curso de composição.
Uma oportunidade para conhecer o que nos promete esta nova geração de músicos.
Os alunos da ESML gostariam de poder contar convosco na divulgação deste evento. A entrada é gratuita! Apareça também!
Obrigado.
Pedro Sousa
terça-feira, abril 27, 2004
quarta-feira, abril 21, 2004
Asilo
naquele Asilo de mármore e baba fria
a Morte entrou de passos apressados
sorvendo almas
berraram os maus mas em vão
os ombros
varas pontiagudas alinhadas ao Céu
ventilavam ondulantes
as orelhas cerradas de cera vivida
as têmporas
a testa
os nervos
balas rebentando de solidão
olhavam lancinantes
como guilhotinas de músculos dissecados
o raciocínio era pura irritação
e para todos
a Vida
chegava numa ambulância
mascarada de carro funerário
toda esta ferida era evasão
os tiros das espingardas
sobrevoavam a sala dos rumores
cadeiras de roda empilhadas em silêncio
e enfermeiras formosas
cuspindo descontracção
e para todos
as clarabóias que fendiam
o solo seco do cérebro comum
eram miragem de um deserto moribundo
guilhotinas
varas
e ventiladores
têmporas
testas de ranho
e nervos de cera
cheirando ao podre
ao esqueleto do caixão
a festa da Vida era a cólera da Morte
almofadas e pantufas
por muito que boas
eram apenas Nadas
naquele Asilo de mármore e baba fria
o único calor vinha das mãos apertadas
in hóspede
Álvaro Seiça Neves
naquele Asilo de mármore e baba fria
a Morte entrou de passos apressados
sorvendo almas
berraram os maus mas em vão
os ombros
varas pontiagudas alinhadas ao Céu
ventilavam ondulantes
as orelhas cerradas de cera vivida
as têmporas
a testa
os nervos
balas rebentando de solidão
olhavam lancinantes
como guilhotinas de músculos dissecados
o raciocínio era pura irritação
e para todos
a Vida
chegava numa ambulância
mascarada de carro funerário
toda esta ferida era evasão
os tiros das espingardas
sobrevoavam a sala dos rumores
cadeiras de roda empilhadas em silêncio
e enfermeiras formosas
cuspindo descontracção
e para todos
as clarabóias que fendiam
o solo seco do cérebro comum
eram miragem de um deserto moribundo
guilhotinas
varas
e ventiladores
têmporas
testas de ranho
e nervos de cera
cheirando ao podre
ao esqueleto do caixão
a festa da Vida era a cólera da Morte
almofadas e pantufas
por muito que boas
eram apenas Nadas
naquele Asilo de mármore e baba fria
o único calor vinha das mãos apertadas
in hóspede
Álvaro Seiça Neves
segunda-feira, abril 19, 2004
sexta-feira, abril 16, 2004
Sente-me, Ouve-me, Vê-me
papel?
papel amachucado
ama?
o choque?
ou ama, chocado?
risca
risca
riscadores
ouvido sábio!
falta-te um pouco de retina
e algo mais de olho!
ouvido amachucado
tesoura
corta
risca
risca
CARVÃO
linha sábia
papel
fruição
agitação
ruído
e atrito
risca
risca
rasga
um zip zip de água canalizada
tesoura
papel
som amachucado
fruição
fricção
atrito
água zip zip
rés rés
fum pa fum
zum zum
zip zip
desejo final
tesoura
corte
risco
zum zum
toque amachucado
Ouve-me
Vê-me
Sente-me
Álvaro Seiça Neves
(A partir de
Sermos – um Desenho Habitado,
Helena Almeida, 1979.)
papel?
papel amachucado
ama?
o choque?
ou ama, chocado?
risca
risca
riscadores
ouvido sábio!
falta-te um pouco de retina
e algo mais de olho!
ouvido amachucado
tesoura
corta
risca
risca
CARVÃO
linha sábia
papel
fruição
agitação
ruído
e atrito
risca
risca
rasga
um zip zip de água canalizada
tesoura
papel
som amachucado
fruição
fricção
atrito
água zip zip
rés rés
fum pa fum
zum zum
zip zip
desejo final
tesoura
corte
risco
zum zum
toque amachucado
Ouve-me
Vê-me
Sente-me
Álvaro Seiça Neves
(A partir de
Sermos – um Desenho Habitado,
Helena Almeida, 1979.)
Pés no chão, Cabeça no Céu
Ando em círculos;
os ciclos voltam.
O trabalho nunca está
completo, tem que se voltar
a fazer. O que me interessa
é sempre o mesmo:
o espaço, a casa, o tecto,
o canto, o chão; depois
o espaço físico de tela,
mas o que eu quero é tratar
emoções. São maneiras
de contar uma história.
Helena Almeida, Seduzir
Ando em círculos;
os ciclos voltam.
O trabalho nunca está
completo, tem que se voltar
a fazer. O que me interessa
é sempre o mesmo:
o espaço, a casa, o tecto,
o canto, o chão; depois
o espaço físico de tela,
mas o que eu quero é tratar
emoções. São maneiras
de contar uma história.
Helena Almeida, Seduzir
quarta-feira, abril 14, 2004
O suicída que cometeu parricídio
(…)
- Vejo pela tua cara que já decidiste. Para que me vens pedir opinião?
Wolfgang não responde. Está de pé, a olhar pela janela. Lá fora, o céu cinzento ameaça descarregar as suas mágoas. Não há movimento na rua. As casas vizinhas estão adormecidas, como se toda a cidade estivesse hibernando, embalada pelos primeiros dias do rude Inverno austríaco. Apenas a pequena sala parece estar ciente da sua existência.
- Ainda não decidi – responde, sem desviar o olhar.
- Mas vais fazê-lo.
- E porque não? – Irritado, Wolfgang fixa os olhos do seu pai. – Julgas que eu quero? Achas que é por minha vontade ou por teimosia? Peço-te; dá-me apenas um motivo e eu juro que desisto. Só preciso de uma palavra tua que justifique a tua posição, e eu renuncio a todas as minhas pretensões.
Leopold suspira. Esfrega as suas mãos pela cara, passando pelo queixo, subindo arduamente até aos olhos e regressando rente ao nariz. Lentamente, ergue-se da sua cadeira. Dirige-se a um velho armário, ficando com uma atitude contemplativa à sua frente, de mãos cruzadas atrás das costas. Wolfgang aproxima-se por trás do pai e assume a mesma pose. Finalmente, Leopold quebra o silêncio:
- Abre o armário.
Wolfgang obedece. Ao abri-lo, todo ele geme, como que manifestando o seu desagrado por perturbarem o seu sono secular. Wolfgang dá o passo atrás, oferecendo espaço ao seu pai. Leopold retira uma caixa de sapatos que se encontra por baixo de um casaco bafiento. Abre-a e passa-a para as mãos do seu filho.
- Não és uma criança. Faz o que achas que tens de fazer.
Wolfgang tem uma expressão carregada, mas acena em acordo. Beija o pai e retira-se da sala. Leopold vê-o a fechar a porta. Enquanto se dirige de novo para a sua cadeira, ouve os passos de Wolfgang a subir as escadas. Senta-se, cansado e derrotado, sentindo o seu filho no quarto que se situa por cima. Mas ao fechar os olhos, já não ouve o tiro que Wolfgang dispara contra a sua cabeça, nem o grito de Anna Maria. Também não se apercebe da agitação que se criou no andar de cima, quando todos descobrem o corpo do jovem Wolfgang. E não vê a sua mulher a entrar pela sala, esbaforida e lavada em lágrimas, gritando:
- Está morto!
Cristóvão Figueiredo
(…)
- Vejo pela tua cara que já decidiste. Para que me vens pedir opinião?
Wolfgang não responde. Está de pé, a olhar pela janela. Lá fora, o céu cinzento ameaça descarregar as suas mágoas. Não há movimento na rua. As casas vizinhas estão adormecidas, como se toda a cidade estivesse hibernando, embalada pelos primeiros dias do rude Inverno austríaco. Apenas a pequena sala parece estar ciente da sua existência.
- Ainda não decidi – responde, sem desviar o olhar.
- Mas vais fazê-lo.
- E porque não? – Irritado, Wolfgang fixa os olhos do seu pai. – Julgas que eu quero? Achas que é por minha vontade ou por teimosia? Peço-te; dá-me apenas um motivo e eu juro que desisto. Só preciso de uma palavra tua que justifique a tua posição, e eu renuncio a todas as minhas pretensões.
Leopold suspira. Esfrega as suas mãos pela cara, passando pelo queixo, subindo arduamente até aos olhos e regressando rente ao nariz. Lentamente, ergue-se da sua cadeira. Dirige-se a um velho armário, ficando com uma atitude contemplativa à sua frente, de mãos cruzadas atrás das costas. Wolfgang aproxima-se por trás do pai e assume a mesma pose. Finalmente, Leopold quebra o silêncio:
- Abre o armário.
Wolfgang obedece. Ao abri-lo, todo ele geme, como que manifestando o seu desagrado por perturbarem o seu sono secular. Wolfgang dá o passo atrás, oferecendo espaço ao seu pai. Leopold retira uma caixa de sapatos que se encontra por baixo de um casaco bafiento. Abre-a e passa-a para as mãos do seu filho.
- Não és uma criança. Faz o que achas que tens de fazer.
Wolfgang tem uma expressão carregada, mas acena em acordo. Beija o pai e retira-se da sala. Leopold vê-o a fechar a porta. Enquanto se dirige de novo para a sua cadeira, ouve os passos de Wolfgang a subir as escadas. Senta-se, cansado e derrotado, sentindo o seu filho no quarto que se situa por cima. Mas ao fechar os olhos, já não ouve o tiro que Wolfgang dispara contra a sua cabeça, nem o grito de Anna Maria. Também não se apercebe da agitação que se criou no andar de cima, quando todos descobrem o corpo do jovem Wolfgang. E não vê a sua mulher a entrar pela sala, esbaforida e lavada em lágrimas, gritando:
- Está morto!
Cristóvão Figueiredo
quinta-feira, março 18, 2004
O vício
3 horas!
em vício
da violência parda do vazio
nas águas esburacadas
por plátanos enroscados em planície
um torpor de vício amarelado
da violência parda do vazio
chamo as pálpebras do sorriso
chamo os corais desta língua cerrada
e nisto...
mas
o quê?
miragem
não chamo mais
pálpebras do sorriso?
sorriso! nas pálpebras da ilusão
o Ministro da Cultura
ante plátanos de pedregulhos
boa-tarde Ex.mo Sr. Ministro!
boa-tarde
não chamo mais
o Sr. diz trazer a chave
penso...
chave?
da violência parda do vazio?
não Sr. Ministro!
do seu vício também...
Álvaro Seiça Neves
3 horas!
em vício
da violência parda do vazio
nas águas esburacadas
por plátanos enroscados em planície
um torpor de vício amarelado
da violência parda do vazio
chamo as pálpebras do sorriso
chamo os corais desta língua cerrada
e nisto...
mas
o quê?
miragem
não chamo mais
pálpebras do sorriso?
sorriso! nas pálpebras da ilusão
o Ministro da Cultura
ante plátanos de pedregulhos
boa-tarde Ex.mo Sr. Ministro!
boa-tarde
não chamo mais
o Sr. diz trazer a chave
penso...
chave?
da violência parda do vazio?
não Sr. Ministro!
do seu vício também...
Álvaro Seiça Neves
terça-feira, março 16, 2004
Angústia
Tortura de pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!
E não se quer pensar!... e o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Querer apagar no céu - ó sonho atroz! -
O brilho duma estrela, com o vento!...
E não se apaga, não... nada se apaga!
Vem sempre rastejando com a vaga...
Vem sempre perguntando: "O que te resta?..."
Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
Florbela Espanca
Tortura de pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!
E não se quer pensar!... e o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Querer apagar no céu - ó sonho atroz! -
O brilho duma estrela, com o vento!...
E não se apaga, não... nada se apaga!
Vem sempre rastejando com a vaga...
Vem sempre perguntando: "O que te resta?..."
Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
Florbela Espanca
A HIDRA
(VENDO PASSAR SEMINARISTAS)
Olhai, vede-os passar em legiões escuras,
Intonsos, apesar de todas as tonsuras,
Com um ar imbecil, caliginoso, estranho,
Marcados a tesoira assim como um rebanho,
E envoltos em cruéis balandraus de entremez,
– As lobas, sob as quais há lobos muita vez!...
Ó galuchos da Fé, recrutas do Divino,
Que um chocalho de bronze hiperbólico – um sino –
Faz erguer, faz dormir, faz deitar, faz andar,
Eu não sinto por vós, marionnettes do altar,
Nem ódio nem rancor. Sois vítimas. Loiola
Dobra-vos a cerviz com a canga da estola,
E jungindo-vos, bois nocturnos, ao arado,
Rasga convosco o negro e fúnebre valado
Aonde o vosso Deus semeia para a infância
A flor da estupidez e o trigo da ignorância.
A Igreja, a cortesã sensual de ventre obeso,
Ontem mulher de Cristo e hoje mulher de Creso,
Para a rapina odiosa e vil de que se nutre,
Mochos, deu-vos a calva ortodoxa do abutre!
Matilha de Leão XIII, a vossa presa é o mundo.
Tartufo, bode obsceno e teólogo profundo,
Ensina-vos, conforme o ritual mais perfeito,
A cruzar, como S. Francisco, as mãos no peito,
Sob a sotaina arqueando a gravidez das panças,
A impor jejuns, benzer caixões, salgar crianças,
A grunhir, a ladrar sermões, missas cantadas,
E a escriturar o Céu por partidas dobradas.
Não vos odeio, não, pálidos salafrários;
Vós sois unicamente os comparsas mortuários
Do papa, esse Barnum que assombra a multidão,
Com o Espírito Santo a vir comer-lhe à mão,
Satanás a frigir (sarrabulhada trágica!)
Heresiarcas de estopa em caldeirões de mágica,
E Jeová, um urso estúpido e cruel,
A lamber-lhe a sandália, a babujar-lhe o anel,
E a ameaçar furibundo este mundo precito
A rufos de trovões no tambor do infinito.
A Igreja é uma serpente escura, bicho imundo,
Gigantesco reptil que dá a volta ao mundo,
E em cujas espirais, ébrias de raiva insana,
Um Lacoonte imortal – a consciência humana,
Há séculos se estorce em convulsão atroz.
Os elos desse monstro implacável sois vós,
Sacristas. A cabeça é o papa.
Ora as serpentes
Têm a força na cauda e o veneno nos dentes.
Guerra Junqueiro
(VENDO PASSAR SEMINARISTAS)
Olhai, vede-os passar em legiões escuras,
Intonsos, apesar de todas as tonsuras,
Com um ar imbecil, caliginoso, estranho,
Marcados a tesoira assim como um rebanho,
E envoltos em cruéis balandraus de entremez,
– As lobas, sob as quais há lobos muita vez!...
Ó galuchos da Fé, recrutas do Divino,
Que um chocalho de bronze hiperbólico – um sino –
Faz erguer, faz dormir, faz deitar, faz andar,
Eu não sinto por vós, marionnettes do altar,
Nem ódio nem rancor. Sois vítimas. Loiola
Dobra-vos a cerviz com a canga da estola,
E jungindo-vos, bois nocturnos, ao arado,
Rasga convosco o negro e fúnebre valado
Aonde o vosso Deus semeia para a infância
A flor da estupidez e o trigo da ignorância.
A Igreja, a cortesã sensual de ventre obeso,
Ontem mulher de Cristo e hoje mulher de Creso,
Para a rapina odiosa e vil de que se nutre,
Mochos, deu-vos a calva ortodoxa do abutre!
Matilha de Leão XIII, a vossa presa é o mundo.
Tartufo, bode obsceno e teólogo profundo,
Ensina-vos, conforme o ritual mais perfeito,
A cruzar, como S. Francisco, as mãos no peito,
Sob a sotaina arqueando a gravidez das panças,
A impor jejuns, benzer caixões, salgar crianças,
A grunhir, a ladrar sermões, missas cantadas,
E a escriturar o Céu por partidas dobradas.
Não vos odeio, não, pálidos salafrários;
Vós sois unicamente os comparsas mortuários
Do papa, esse Barnum que assombra a multidão,
Com o Espírito Santo a vir comer-lhe à mão,
Satanás a frigir (sarrabulhada trágica!)
Heresiarcas de estopa em caldeirões de mágica,
E Jeová, um urso estúpido e cruel,
A lamber-lhe a sandália, a babujar-lhe o anel,
E a ameaçar furibundo este mundo precito
A rufos de trovões no tambor do infinito.
A Igreja é uma serpente escura, bicho imundo,
Gigantesco reptil que dá a volta ao mundo,
E em cujas espirais, ébrias de raiva insana,
Um Lacoonte imortal – a consciência humana,
Há séculos se estorce em convulsão atroz.
Os elos desse monstro implacável sois vós,
Sacristas. A cabeça é o papa.
Ora as serpentes
Têm a força na cauda e o veneno nos dentes.
Guerra Junqueiro
terça-feira, março 09, 2004
Rã
Uma rã
Sã
Era assim
Eu era assim...
Livre
Como uma rã
De mente vã
Hã?
Eu era assim...
Vivo
De papo rijo
E alma
Sã
Saltitava
Leve
Como lã
Hã?
Eu era assim...
Incerto
Como vento
Uma rã
E muito lento
Uma rã
Sã
Perna longa
E mente vã
Eu era assim...
Eu era livre...
Fui livre.
Agora não.
Rã
Sã
Tã
Uã
Vã
Wã
Xã
Yã
Zã.
Uma rã
Sã
Era assim
Eu era assim...
Livre
Como uma rã
De mente vã
Hã?
Eu era assim...
Vivo
De papo rijo
E alma
Sã
Saltitava
Leve
Como lã
Hã?
Eu era assim...
Incerto
Como vento
Uma rã
E muito lento
Uma rã
Sã
Perna longa
E mente vã
Eu era assim...
Eu era livre...
Fui livre.
Agora não.
Rã
Sã
Tã
Uã
Vã
Wã
Xã
Yã
Zã.
terça-feira, março 02, 2004
segunda-feira, março 01, 2004
cascalho sonâmbulo
entre cascalho e urros enchidos
toldava-se o chão da basílica
entre os dias da tarde
entrou um espasmo de Luz
que pisou todas as almas
arrefecendo diante daquele odor
de velas derretidas
a queimar caixões em ravina
na senda do divino
as mãos traçavam rotas de ruína
traçavam gelados clamores
imitando seus sonâmbulos vizinhos
e as pedras cindidas
entre balaustres e cornijas comidas
rolou um urro...
era Ele – o espasmo de Luz
em brasa em fogo raivoso
vomitando o cheiro de velas derretidas
e diante dos ajoelhados
rolou um urro...
acabara de pisar o cascalho
daquelas almas adormecidas.
Álvaro Seiça Neves
entre cascalho e urros enchidos
toldava-se o chão da basílica
entre os dias da tarde
entrou um espasmo de Luz
que pisou todas as almas
arrefecendo diante daquele odor
de velas derretidas
a queimar caixões em ravina
na senda do divino
as mãos traçavam rotas de ruína
traçavam gelados clamores
imitando seus sonâmbulos vizinhos
e as pedras cindidas
entre balaustres e cornijas comidas
rolou um urro...
era Ele – o espasmo de Luz
em brasa em fogo raivoso
vomitando o cheiro de velas derretidas
e diante dos ajoelhados
rolou um urro...
acabara de pisar o cascalho
daquelas almas adormecidas.
Álvaro Seiça Neves
segunda-feira, fevereiro 23, 2004
trono de cartão
destas cantarias ululantes
rasgando o meu dorso
como sapatas da sabedoria
num trono de cartão
lança-se um x-acto frenético
espetado nos olhos sem escala
ó rincão do córtex
trono de cartão
dai-me antes o real, o real!
num espasmo de sangue
de bala
num grito frenético
aberto de mão em mão
Álvaro Seiça Neves
destas cantarias ululantes
rasgando o meu dorso
como sapatas da sabedoria
num trono de cartão
lança-se um x-acto frenético
espetado nos olhos sem escala
ó rincão do córtex
trono de cartão
dai-me antes o real, o real!
num espasmo de sangue
de bala
num grito frenético
aberto de mão em mão
Álvaro Seiça Neves
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