quinta-feira, setembro 23, 2004

Memórias Deturpadas de Uma Terra Longínqua

Chovia torrencialmente, e o tecto não oferecia protecção suficiente. O chão estava alagado, e eu procurava concentrar-me no som das gotas de água a bater contra a janela, numa tentativa desesperada de adormecer. De súbito, entraram sem bater à porta. Eram palhaços, a dançar no quarto. Ou talvez fossem apenas ratos. Bom, suponhamos que eram ratos vestidos de palhaços; adiante: cantavam aos gritos, numa algazarra nunca antes vista. Já me latejavam os ouvidos, mas por muito que eu tentasse esconder-me sob os cobertores e tapar a cabeça com a almofada, as palavras roucas continuavam a ressoar-me no cérebro.

...Oh bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao!...

Oh, céus! Que coisa aterradora! De onde teria vindo todo aquele entusiasmo súbito? Decidi que o melhor era escapulir-me pelo alçapão que estava escondido por debaixo dos lençóis com desenhos infantis de gatos gigantes. Levantei-o pesadamente e deparei-me com uma série ordenada de degraus. De cabeça baixa para não deixar que o tecto batesse contra ela, lá fui descendo pelas escadas estreitamente enroladas em caracol até chegar às ruas escuras de Riga.
Criaturas fantasmagóricas deambulavam em trajes comunistas, de semblante carregado, perguntando-se talvez como é que conseguiriam voltar a casa. Os cânticos dos ratos palhaços estavam a ficar cada vez mais distantes. Suspirei de alívio; agora, já podia descansar. Resolvi caminhar atrás de um espectro de ar simpático, com um sorriso encantador que reflectia a minha figura desleixada. Fui assim conduzido até uma praça ampla e luminosa, que contrastava com o resto da cidade. No meio da praça estava um palco de madeira tosco e instável, no alto do qual se encontrava uma farta cabeleira loira que se apoiava numa senhora vestida de vermelho. A cabeleira barafustava com gestos exuberantes contra uma série de carros mal estacionados. Ao que parece, estava desesperada com a falta de brio dos condutores. Olhei para a plateia que assistia ao discurso. Eram às centenas, rodeando o palco num semicírculo algo deformado, semelhante a uma lua em quarto crescente, ou até a um sorriso. Contudo, e apesar dos berros estridentes, ninguém parecia prestar muita atenção à cabeleira. Todos os espectadores estavam mais preocupados com o facto de a vodka ter acabado. Lançavam olhares ansiosos à procura de uma garrafa de vidro que tivesse sobrevivido ao genocídio, soltavam suspiros, batiam com os nós dos dedos no queixo, mas ninguém arredava pé dali. Todos sabiam que qualquer pessoa que tentasse desertar seria imediatamente proibida de fazer inversões de marcha durante os próximos 14 meses. O ambiente transbordava sonolência, enfado e impaciência, apenas interrompidos pelas palavras iradas da cabeleira, que cruzavam o ar num rasgão sonoro.
Muito sinceramente, não me apetecia ouvir o resto do discurso. Estava farto de histerismo. O que me apetecia mesmo era perguntar a uma rapariga que estava ao meu lado se ela não quereria tomar um café comigo. Mas ela não falava a minha língua, e para além disso eu sabia que ela nunca iria aceitar, pois tinha de ficar a ouvir o discurso até ao fim. Optei então por me afastar, aproveitando para me misturar com uma debandada de fotógrafos que corria em direcção a um porco voador vestido de freira. Ao vê-los, o porco atirou-lhes uma série de papéis com o número 10 escrito, que escorregaram sob os sapatos dos fotógrafos. Enquanto pernas, números, máquinas fotográficas, cabeças, papéis, cigarros e óculos se transformavam num aglomerado indiferenciado e confuso, o porco gritou com desdém "Viva la figa in Riga! Ten points for you!" e levantou voo em direcção à torre de uma igreja.
Passei por cima da confusão de fotógrafos tentando não pisar nenhum nariz e entrei no elevador mais próximo, que me levou numa subida interminável até ao milésimo andar de um edifício que era vagamente parecido com o Big Ben, visto ao longe e de um ângulo de 67º. À medida que o elevador ascendia, a temperatura ia aumentando estupidamente. Suava por todos os poros, e nuvens de vapor de água saíam das fendas no chão; mas mesmo assim, recusei-me a tirar o casaco. Um termómetro que estava ao lado do painel com mil e um botões indicava 80º centígrados quando cheguei ao andar desejado. Os meus óculos, obviamente, embaciaram. Estava completamente encharcado quando saí do elevador, e não conseguia ver por onde ia. Mas os meus pés sabiam perfeitamente para onde me levavam: procuravam a origem daquela música techno cujo refrão não era mais do que uma repetição automatizada da palavra "Ecstasy", a célebre droga do amor. Deparei-me com uma porta de madeira de proporções gigantescas. Não tinha dúvidas: a música vinha dali.
Dirigi-me para a maçaneta, mas uma velha manca com o cabelo cheio de farinha (ou seria cocaína?) surgiu das sombras e disse-me que aguardasse. Não consegui perceber as palavras que ela proferira, mas o gesto que fez com a mão foi elucidativo. Enquanto esperava, ela agarrou num pequeno objecto cilíndrico e fino que eu não percebi o que era, enfiou-o pela fechadura da porta e, ao olhar para ele, fez sinal para eu entrar. Percebi então do que se tratava: ela estava apenas à espera da temperatura ideal para me dar passagem. Empurrei a porta e dei alguns passos, sentindo um ar gelado a invadir os meus pulmões, que colapsaram sem sequer me pedir licença. Virei-me para trás para tirar uma fotografia à velha, mas ela desaparecera. "Estranho", pensei eu.
Caminhei por um corredor de paredes petrosas com velas instáveis a iluminar o caminho, até atingir um cortinado de veludo roxo. Puxei-o gentilmente para o lado e atravessei-o. Dei por mim numa sala cheia de mafiosos que se embebedavam numa orgia violenta, sorvendo cerveja directamente da torneira dos barris ou lambendo os corpos regados de bálsamo de algumas mulheres que por ali passeavam. Quando a minha presença foi notada, fez-se silêncio. Uma voz feminina chegou ao pé de mim e murmurou-me ao ouvido: "I want you to fuck me right now... Do it! Otherwise, they’ll kill you." Não tinha a mínima hipótese. Perante uma audiência embriagada que me lançava olhares ameaçadores, tive de me despir totalmente e penetrar uma rapariga que eu nem sequer conhecia.
Ela parecia satisfeita e sorriu ternamente, mas eu achei que ia rebentar quando os nossos olhos se cruzaram. Sentia-me terrivelmente envergonhado com o silêncio que nos rodeava e não conseguia pensar, mas algo instintivo e animalesco dentro de mim sabia exactamente o que fazer. Para trás e para diante, aquilo lá se foi desenvolvendo. Não conseguia ver a sua cara a contorcer-se, nem ouvir os seus gemidos, nem sentir o seu corpo a vibrar e a apertar o meu, nem cheirar aquele odor carregado de volúpia e ácida feminilidade. A única coisa que sentia era a minha boca seca, com a língua colada aos dentes. Precisava de líquido urgentemente. Então, murmurei: "Alus." Toda a gente se riu, mas eu insisti e gritei: "Alus, porra! Alguém me dá a puta de uma cerveja?" O bar em peso aplaudia e rejubilava sadicamente a cada palavra minha. Decidi então que o melhor era acabar com aquilo o mais depressa possível, antes que morresse desidratado.
Embalado pelo ritmo marcado pelas palmas da audiência, balancei a minha pelve cada vez mais depressa entre as suas pernas, até ao êxtase final. Soltaram-se gritos de euforia e soaram salvas de tiros de canhão. Consegui finalmente libertar-me, espalhando gotas do fluído esbranquiçado e brilhante pelo chão. Enojado comigo mesmo, vomitei a minha alma de um só jacto e fugi porta fora sem olhar para trás, saltando por cima de arbustos, evitando rochas e pisando enormes poças de lama, até que mergulhei de cabeça num lago escuro e gélido. Respirei de alívio, qual tubarão-martelo lançado de novo à água por um pescador mais compreensivo e conhecedor das coisas do mar. Quando voltei à tona, vi o céu mais belo do que nunca. As estrelas estavam irrequietas, dançando polkas naquele palco escuro sem fim. De quando em vez, uma estrela mais arrojada fazia alguns truques, deixando atrás de si um rasto luminoso e desaparecendo de seguida.
Ali fiquei, de barriga para o ar, não sei durante quanto tempo. Já o dia tinha nascido quando recuperei de novo consciência do meu corpo. Ao contrário da noite anterior, o céu estava limpo e o sol resplandecia. Tive de sair do lago e ir a correr até ao meu quarto; os palhaços já se tinham retirado para as suas tocas, mas cheguei mesmo a tempo de surpreender um insecto gigante que se preparava para abrir a minha garrafa de vinho do Porto. Tive de lhe espetar um pontapé no seu rabo couraçado e proferir uma série de palavrões, mas ele acabou por se retirar, resmungando contra a sua má sorte. Vesti umas roupas quentes e saí de novo, saltando pela janela.
Atravessei a planície verdejante, assobiando o "Grândola Vila Morena", quando me lembrei que não tinha fechado a porta. Perguntei a uma adolescente loira de olhos esverdeados que por ali passava se ela não poderia ir até ao meu quarto e fechar a porta, mas ela disse que tinha de acabar de tratar do seu jardim. Ofereci-me para a ajudar; ela olhou-me de alto a baixo e, torcendo o nariz, respondeu-me que preferia fazê-lo sozinha.
Inexplicavelmente ofendido, virei-lhe as costas e baixei as calças, num gesto pouco digno e até algo patético. Ela riu-se e disse-me que seria melhor esconder as minhas nádegas antes que o pai dela chegasse. Obedeci imediatamente e olhei à volta, com medo de ser surpreendido por algum senhor furioso de ancinho na mão. Ouvi de novo o seu riso; contudo, desta vez era um riso triste, que mais parecia um soluçar. Voltei-me para ela e verifiquei que eram efectivamente lágrimas que lhe corriam pelas bochechas pálidas. Aproximei-me, simultaneamente curioso e aterrado. Ela levantou os olhos, que já não eram verdes mas sim vermelhos, e pediu-me para me ir embora sem me despedir. Percebi imediatamente o que é que ela queria dizer. Eu também nunca gostei de despedidas.
Abraçámo-nos uma última vez, envolvidos pelo silêncio campestre. Quando a soltei, dei dois passos atrás. À medida que tudo se esfumava em bruma e incerteza, não conseguia tirar os olhos dela… porque sabia que nunca mais nos voltaríamos a ver.

Cristóvão Figueiredo

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