sábado, dezembro 25, 2004

[XYZ]


[X]
passa-se a pé. a pé junto. junto ao carteiro. o carteiro para ali concentrado no ofício. frente às ranhuras negras. bocas de correio. depósitos das mãos caligrafadas. passa-se a pé junto ao carteiro. assim semelhante. semelhante a um plano cinematográfico. uma câmara em rotação dentro de um veículo. movimento lento. olho de peixe. e observa-se o carteiro e merda! merda! que ofício! um ninguém distribuindo cartas de alguém para outro alguém. deve sentir. sentir talvez. talvez uma curiosidade atroz. angústia forte. a latejar nas têmporas. como aquele sangue espesso subindo todo de repente à curiosidade. e as mãos palpitam. o corpo palpita. e o carteiro pensa merda! merda! nunca recebo cartas. nunca. e aqui estou a oferecê-las a outros. água. luz. tribunais. ministérios. bancos. tudo bem. mas depois há estas escritas à mão. letra miudinha.
e então opera-se a câmara. um grande plano e repara-se. repara-se no carteiro laborando. no cartei. cartei! e esboças agora um sorriso bem cínico: ah pois! com que então! apanhei-te! pensas.
não penses. observa antes: a moralidade descastrando-se. a solidão a chicoteá-lo. o carteiro em grande plano. focadíssimo. abrindo uma carta. as mãos palpitam. o corpo palpita. remetente: postdamer platz. berlim.


[Y]
destinatário:
as conversas às vezes dão para isto. conhece-se um homem na rua. os seus oitenta e tal anos ainda caminham. troca-se diálogo cabeça dentro. troca-se diálogo e reflete-se. se assim não fosse talvez te escrevesse acerca do tempo. carta meteorologista. como tenho passado por cá. olá. está tudo bem. mas não. prefiro este encontro. mesmo sabendo do seu desinteresse. do seu desinteresse para ti.
então: segundo me pareceu este homem tritura-se na calçada. veste sempre o mesmo. memória. vive nesta cidade desde que conhece o conceito de cidade. e vai assistindo. assistindo à desconstrução. às gruas derrubando pedra e madeira. dinossauros em fase carnívora. pêndulos meteóricos. implosão e explosão. máquinas incisivas. lâminas centrífugas desbastando paralelos. paralelas ao solo. e os vestígios em sangue. a amputação dos edifícios. ali deixados como cadáveres. deixados para não se esquecer. os restos envergonhados por terem sido. expostos. as paredes já coaguladas. o interior dos quarteirões desfeito. desfeito. a cirurgia das avenidas. cerzindo. cerzindo.
e ainda me falou do lugar onde a infância o habitou. aí. aí fundiu-se um novo lugar. mastigando o anterior. as décadas devoram os espaços. a reciclagem impõe-se. a infância vai desaparecendo em passos leves.
e este homem ainda caminhando. cidade cima. cidade baixo. e percebo que cada imagem que guardava. os locais seguros. vão desaparecendo também. e penso no seu cérebro. já velho. onde dia após dia outra árvore foge. deixando a recordação como raiz. mas. mas as recordações são tantas e aparecem em tantas vozes. as recordações espezinham-se. invadem-se. sobrepõem-se e já nada é nítido. e mais um dia. e menos uma imagem. menos um espaço. outra árvore cerebral em decomposição. apagando-se velozmente. e os ramos a regredir. a inverter o sentido. o sentido construído durante uma vida. o sentido. o sentido. esse sentido já não. e este homem cujo corpo é a cidade. desconstruindo. desconstruindo. este homem. vértebras em ruas. tronco de água. a cirurgia das avenidas. vértebras a estilhaçar. fracturadas. músculos de alcatrão e hipertrofias e os tendões como cabos de fibra óptica e as omoplatas verdes e o seu grande pulmão respirando pelas condutas de ar: artérias dilatando-se num emaranhado de raízes tubos canais subterrâneos. e ainda a topografia epidérmica. epidérmica. a pele em ruínas. a pele a arder já fóssil. a fotossíntese dos arranha-céus. e este homem mais um dia. este homem mais um dia. menos uma imagem. e largo-o porque já não aguento. e vejo-o caminhar. já longe. e é nítido. cristalino. o corpo envelhece. a cidade entra em mutação. a memória dilui-se. os ramos invertem o sentido. rápidos. rápidos. e vão chegando a um centro inicial. um centro nulo donde se partiu. donde se nasceu. um centro cada vez mais microscópico. um centro de âmbar claro.
talvez o homem caia pelo caminho. a memória vazia. o corpo oco. e saiba que o branco infinito o vem buscar.
o remetente.


[Z]
berlim. entre as 7 e 8 da manhã. finalmente cheguei. mas que corrupio. é domingo. e só se vêem homens apertados e fatos e malas de mão correndo para o metro. é domingo. é domingo. mas de resto as avenidas estão vazias. passo por um prédio. inscreve no topo bonjour tristesse. parece saudar-me. mas é realmente triste. ainda não compreendi. desde que cheguei que ouço vozes. gritos íntimos. um som peganhento não me larga. há aqui uma linha infindável que grava o chão. separa-o. um sulco de ossos. separa-o. mas também não sei porquê. encosto-me a um muro rascunhado. tem piada o que esta malta faz por cá. os carros para este lado são mais velhos. sinto o leste a chamar-me. as varandas das casas sujam a verticalidade. na outra parte da cidade é tudo luxo. tudo novo. estes alemães trabalham porra! o comboio para ali com uma disfunção qualquer. avariado em dortmund. no interior da madrugada. hora e tal de paragem. e ainda assim chegou à hora prevista. tudo aqui me parece pontual. meticuloso. tudo se move metodicamente. até os objectos são rigorosos.
deságuo numa praça enorme. e lembro-me de quando era novo. digo lembro-me apenas porque sinto. sinto um terrível sufoco. um cinto à volta do tórax. como quando andava maltrapilho e guarda-redes pelas arenas de futebol do meu bairro. certo dia um macho qualquer disparou-me um torpedo tal. tal que me fuzilou a barriga e o peito. estive minutos. estive minutos sem respirar. de braços enrolados à cinta. bom. mas. mas não importa isso. apenas porque sinto o mesmo ao desaguar nesta praça. depois de tanto caminhar juntei outra perna às minhas. a debilidade. fiquei com tonturas todo o dia em volta desta cidade. um espelho de labirintos. entrei numa sala altíssima. encerraram-me e só ouvia o barulho do exterior por uma fresta oblonga de luz. perturbava a vista. uma sala sem saída. insondável. hedionda. estes alemães são estranhos. no entanto fascinam-me tanto como a cidade. o seu crepitar latente. há mesmo algo a fervilhar cá dentro. parece-me. mais uns anos e o mundo começa a prestar vassalagem a berlim.
como disse: deságuo numa praça enorme. e começo a perceber melhor a carta que abri.


[O]
diz-se que a origem é o centro. diz-se que é lá que se dá a intersecção. a intersecção dos planos. dos 3 planos. na origem. cruzamento de qualquer coisa. solução. desvendar o disperso. diz-se referencial e depois lá origem lá centro lá intersecção. diz-se. diz-se.
não sei. cada olhar é divergente. cada leitura é um olhar.


e.e.

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