quinta-feira, dezembro 16, 2004

Tertúlia

Em dia cinzento, de ar carrancudo e magoado, desenvolveu-se uma tertúlia em plena Biblioteca Municipal. Como sempre acontece quando há politiquices pelo meio, a tertúlia rapidamente se metamorfizou num monstro disforme e kafkiano com cara de debate. De um lado das trincheiras, os Vermelhos. Do outro, os Ignorantes. Havia ainda alguns leitores bucólicos e outros tantos estudantes absortos que tentavam sobreviver à chacina, mas em todos os conflitos há vítimas civis inocentes e não foi atrás dos livros e cadernos que encontraram abrigo.
Os Vermelhos atacavam com artilharia pesada: Marx dizia que “numa sociedade burguesa o capital é independente e tem individualidade, mas a pessoa vive dependente e sem individualidade”, ao passo que Fernando Pessoa tinha dito uma vez que “a diferença entre um homem e um homem grande é superior à diferença entre um homem e um macaco.” Já um estudo revelava que “80% das riquezas mundiais estavam distribuídas por 25% da população mundial, sobretudo na Europa e Estados Unidos.” Esses mesmos Estados Unidos cuja agência CIA, segundo estava provado, “tem 4 planos diferentes para invadir Cuba.”
Os Ignorantes, indefesos, tentavam desviar-se como podiam das frases atiradas certeira e furiosamente. Mas os argumentos eram demasiado potentes. Uns provocavam morte imediata ao rebentar, outros deixavam os soldados desfigurados e mutilados.
Trotsky, 11 de Setembro, Hitler, Engels, a Consciência de Massas, Che Guevara, União Soviética, Fascismo, Nietzsche, a Guerra Fria, Lenine, a República Popular da China, o preço das batatas e as taxas da PT, Álvaro Cunhal e Santana Lopes, tudo voava indiscriminadamente pelo campo de batalha. Os Vermelhos entusiasmavam-se e disparavam em todas as direcções, metralhando tudo aquilo que se mexesse. Mas gradualmente as vozes baixaram de tom, as palavras perderam agressividade e os discursos ficaram menos fluentes. O resultado da batalha já não poderia inverter-se.
Foi então que saiu da boca daquele que parecia ser o Mais Afoito o seguinte:

“Isto é tudo muito simples, meus amigos. O povo, por si só, é a força motriz que faz História.”

Da segurança dos seus livros, um pensamento atravessou o cérebro de um jovem leitor. Não resistiu, e correu o risco de se dirigir ao General. Inocentemente, perguntou-lhe:
- Isso é o que tu pensas, ou foi aquilo que leste?
Sem hesitações, o Presidente retorquiu asperamente:
- Isto é aquilo que eu sei, defendo e justifico. Queres discutir isso?
O leitor não teve capacidade de se desviar. A forma veemente e pronta com que o Ditador respondeu funcionou como um tiro no peito. Deixou-se cair, sem qualquer esperança de sobreviver. O sangue corria abundantemente e inundava o chão da sala, juntando-se aos restos de vida das outras vítimas. Talvez devido a este novo triunfo do seu Deus, os Vermelhos redobraram as suas energias e voltaram à carga, sem dó nem piedade.
Enquanto o abraço frio da morte o envolvia, o leitor pode ouvi-los a defender e justificar aquilo que sabiam, com uma fé inabalável. Mas morreu sem saber o que é que eles pensavam.

Cristóvão Figueiredo

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