quinta-feira, setembro 30, 2004

The Stolen Thief

She showed me to her room where she had gathered, through time and fate and purchase, a vibrant collection of antique books and mythological figurines. I was especially struck by the wooden carving near her bed and strolling over to it and picking it up for a closer inspection, she remarked casually "Prometheus."
Yes-it was surely Prometheus! The little figure clearly held the stolen fire in his clenched fist, and somehow (miraculously in fact considering that the sculpture was made entirely of ebony) the sculptor had imbued the figurine's eyes with a magical almost electric glow. I stared deeply into them for a long moment.
"Ah yes, you've spotted the prize of my collection!" she cried out suddenly, her voice bubbling with delight. "Does it have a story?" I asked, knowing that it certainly did and hoping she'd indulge it. "Yes," she took a deep breath, "it does."
And she went on to describe the odd sequence of seemingly chance events which had unavoidably led her to the scene of a fire, a large antique store wreathed in destructive glow. Sirens blared and a crowd gathered across the street to watch the magic ballet of flames shuddering out of the growing inferno. The enchanting chaos of the glorious destruction and the whirl of silhouetted firefighters superimposed upon the bright holocaust seared the night with meaning and granted the fire an aura of a long to be remembered event. Unperturbed by the smoke of thinking, she'd inched closer and closer to the nexus of the hypnotic spectacle.
She described an odd magnetism which drew her towards a window on the far side of the building. Of course the whole area of the fire had been strictly cordoned off by the firemen who were actively engaged in containing the blaze, but as the profound poise of any immaculately certain person grants them a momentary yet immediate authority (she said she "belonged to the fate of the fire" and "God's dreams cannot be woken from"), she'd snuck through a gap in the line of fire-trucks, swerved past several firefighters and stepped to the sill of the window she'd felt so inextricably drawn to. Looking in she'd perceived that the enormous heat from the fire had caused the glass to shatter, leaving only a few shark-like shards to glisten along its jaw-like frame. Stretching her hand inside, carefully navigating the trajectory of her outstretched arm to avoid being impaled by the remaining shards, she'd maneuvered her fingers until they came to rest upon a singularly enticing object. She'd grabbed it and quickly pulled it out and placed it under her shirt without even looking to see what it was... calmly and stealthily she'd crept from the building and slipped back into the crowd.
Struck by an amateur thief's surge of panic, she'd ducked down a small alleyway and ran and ran till she'd reached the steps of her home. Dashing up the stairs she'd crept to her bedroom, taken a few deep breaths, and then shiveringly pulled out from underneath her shirt the object of her impromptu burglary and lo and behold! it was the object I currently held in my own now shivering hands: Prometheus!
"It was thus," she said as she seized me by the waist and pulled me onto the bed in a madly sensuous embrace "that I stole Prometheus from the fire!"

Lucien Zell

in Cafe Irreal: Issue number twelve, August 2004.

* * * * *

Lucien Zell was born in Los Angeles. Born with a birth-defect, a missing right hand, he quickly turned to the performing arts as a means to express a face of beauty which he felt dwelling latent behind the mask of body. Just days before he was to attend Cornish College of the Arts on a full-scholarship, however, his brother committed suicide, and he left America on a ten year trek through Europe, Russia, and the Middle East, finally settling in Prague where his first volume of poems, The Sad Cliffs of Light, was published (by a Czech publishing house, DharmaGaia) and released in 1999. A second collection of poems, Eden's Midnight Playground, was published by DharmaGaia in December of 2003. The father of three children, Zell currently resides in Prague.

terça-feira, setembro 28, 2004

sapos

sapos arqueados. em todo o lado. contrabaixo. piano. sapos de dedos esquiçados. sapos ao som do jazz. jazz ecoando nos nossos corações. corações acelerados pela mentira da realidade que nos dão a comer. a engolir com o punho. corações tristes e sós. corações contorcidos que encontram na música a unidade do vitral a unidade da poesia. sapos em todo o lado. na música. soberbos.

e.e.
alfarrobas

a ria foi dragada. já não se pode atravessar o canal com água pela cintura. joelhos. ou mesmo pelo pescoço. foi dragada. escravizada. e as alfarrobas dançam sobre as crinas dos cavalos que as tentam mastigar. alfarrobas que atravessam o canal já não em bateiras mas em barcos. com cais e cais. a praia tem alforrecas revestidas de sacos de plástico cigarros pedaços de papel e muitas algas fervendo no caldo macio que é a banheira onde nós. alfarrobas. nos tentamos. há vento de oeste. e a ria foi dragada e o seu fundo ventre profundo vincado pelas pás graves dos abutres. os peixes fugiram. as ovas voaram. o leito deslocado e o canal e o canal. o canal dançando também. tocado por este vento de oeste que tudo leva. este vento que transforma água em fino pó de cianeto e se derrama em cima de nós. alfarrobas dançando sobre as crinas dos cavalos. atolados. com suas finas patas enfiadas num lamaçal de alforrecas. dragado.

e.e.

domingo, setembro 26, 2004

gravidade e antigravidade. ou apenas o referencial. positivo e negativo. o pino e as ondas. um pino tão forte que os seios pendem como diospiros suculentos. tão forte que o sangue jorra numa enxaqueca roçando a areia. um pino tão forte e as ondas. a lua a sugar água. newton aos trambolhões na cova arrojada do seu tempo. ondas espumando-se em baba de cão à beira-mar. ondas arrebitadas como diospiros suculentos acabando em água branca prenha de esperma azulado. gravidade e antigravidade. mas são somente contradições. recordo apenas o cheiro das asas dos cactos cortadas a amarelo frio. recordo o cheiro dos figos de ânus aberto e as formigas escorregando por lá e os castelos os castelos de areia puxados contra a terra. recordo o cheiro. recordo sobretudo aqueles raros grãos espaçados de areia que se colaram à ponta dos dedos quando me atingiu um raio de sol alaranjado e era cheiro e era água e era areia e eram seios encavalitados em ondas magníficas. gravidade ou antigravidade? não importa. eram apenas belos grãos de areia colados em belos seios de diospiro.

e.e.

quinta-feira, setembro 23, 2004

Propostas.Ler Devagar

3 Dias para Pablo Neruda

Dia 23 de Setiembre a las 22.00 h, Conferéncia sobre la Obra de PabloNeruda, com Fernando Pinto do Amaral y Miguel Vikeira. Presentación de libros de Poesía y Prosa en Português y Castellano.
Dia 24 de Setiembre a las 22.00 h, Espectáculo de canciones y poesía dePablo Neruda, com Julián del Valle y Rui Meira.
Dia 25 de Setiembre a las 22.00 h, Filme "Ardiente Paciencia", exposición relativa a este filme, con la presencia de su realizador Sr. Henrique Espíritu Santo.

"A Dramaturgia e a Prática Teatral"

No dia 29 de Setembro de 2004 (quarta-feira), pelas 18h30m realiza-se, no Auditório da Sociedade Portuguesa de Autores, a 59ª sessão deste ciclo, dedicada a João Lázaro. Com texto, encenação e representação de João Lázaro, será apresentada a última produção do Te-Ato (grupo-teatro de Leiria) intitulada "Sonho Mau". O dramaturgo, que é também Psicólogo Clínico, pretende que esta sua peça seja "um exercício expressivo, visando reflectir sobre a violência doméstica, sobretudo a que é exercida de modo mais subtil".

Ler Devagar. Rua de São Boaventura, 115. Bairro Alto. Lisboa.
Telefone:21.324.1000 fax:21.325.9994
De 2ª a 5ª das 14 às 24 horas, 5ª a Sábado das 14 às 02 horas, Domingo das 15 às 24 horas
Memórias Deturpadas de Uma Terra Longínqua

Chovia torrencialmente, e o tecto não oferecia protecção suficiente. O chão estava alagado, e eu procurava concentrar-me no som das gotas de água a bater contra a janela, numa tentativa desesperada de adormecer. De súbito, entraram sem bater à porta. Eram palhaços, a dançar no quarto. Ou talvez fossem apenas ratos. Bom, suponhamos que eram ratos vestidos de palhaços; adiante: cantavam aos gritos, numa algazarra nunca antes vista. Já me latejavam os ouvidos, mas por muito que eu tentasse esconder-me sob os cobertores e tapar a cabeça com a almofada, as palavras roucas continuavam a ressoar-me no cérebro.

...Oh bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao!...

Oh, céus! Que coisa aterradora! De onde teria vindo todo aquele entusiasmo súbito? Decidi que o melhor era escapulir-me pelo alçapão que estava escondido por debaixo dos lençóis com desenhos infantis de gatos gigantes. Levantei-o pesadamente e deparei-me com uma série ordenada de degraus. De cabeça baixa para não deixar que o tecto batesse contra ela, lá fui descendo pelas escadas estreitamente enroladas em caracol até chegar às ruas escuras de Riga.
Criaturas fantasmagóricas deambulavam em trajes comunistas, de semblante carregado, perguntando-se talvez como é que conseguiriam voltar a casa. Os cânticos dos ratos palhaços estavam a ficar cada vez mais distantes. Suspirei de alívio; agora, já podia descansar. Resolvi caminhar atrás de um espectro de ar simpático, com um sorriso encantador que reflectia a minha figura desleixada. Fui assim conduzido até uma praça ampla e luminosa, que contrastava com o resto da cidade. No meio da praça estava um palco de madeira tosco e instável, no alto do qual se encontrava uma farta cabeleira loira que se apoiava numa senhora vestida de vermelho. A cabeleira barafustava com gestos exuberantes contra uma série de carros mal estacionados. Ao que parece, estava desesperada com a falta de brio dos condutores. Olhei para a plateia que assistia ao discurso. Eram às centenas, rodeando o palco num semicírculo algo deformado, semelhante a uma lua em quarto crescente, ou até a um sorriso. Contudo, e apesar dos berros estridentes, ninguém parecia prestar muita atenção à cabeleira. Todos os espectadores estavam mais preocupados com o facto de a vodka ter acabado. Lançavam olhares ansiosos à procura de uma garrafa de vidro que tivesse sobrevivido ao genocídio, soltavam suspiros, batiam com os nós dos dedos no queixo, mas ninguém arredava pé dali. Todos sabiam que qualquer pessoa que tentasse desertar seria imediatamente proibida de fazer inversões de marcha durante os próximos 14 meses. O ambiente transbordava sonolência, enfado e impaciência, apenas interrompidos pelas palavras iradas da cabeleira, que cruzavam o ar num rasgão sonoro.
Muito sinceramente, não me apetecia ouvir o resto do discurso. Estava farto de histerismo. O que me apetecia mesmo era perguntar a uma rapariga que estava ao meu lado se ela não quereria tomar um café comigo. Mas ela não falava a minha língua, e para além disso eu sabia que ela nunca iria aceitar, pois tinha de ficar a ouvir o discurso até ao fim. Optei então por me afastar, aproveitando para me misturar com uma debandada de fotógrafos que corria em direcção a um porco voador vestido de freira. Ao vê-los, o porco atirou-lhes uma série de papéis com o número 10 escrito, que escorregaram sob os sapatos dos fotógrafos. Enquanto pernas, números, máquinas fotográficas, cabeças, papéis, cigarros e óculos se transformavam num aglomerado indiferenciado e confuso, o porco gritou com desdém "Viva la figa in Riga! Ten points for you!" e levantou voo em direcção à torre de uma igreja.
Passei por cima da confusão de fotógrafos tentando não pisar nenhum nariz e entrei no elevador mais próximo, que me levou numa subida interminável até ao milésimo andar de um edifício que era vagamente parecido com o Big Ben, visto ao longe e de um ângulo de 67º. À medida que o elevador ascendia, a temperatura ia aumentando estupidamente. Suava por todos os poros, e nuvens de vapor de água saíam das fendas no chão; mas mesmo assim, recusei-me a tirar o casaco. Um termómetro que estava ao lado do painel com mil e um botões indicava 80º centígrados quando cheguei ao andar desejado. Os meus óculos, obviamente, embaciaram. Estava completamente encharcado quando saí do elevador, e não conseguia ver por onde ia. Mas os meus pés sabiam perfeitamente para onde me levavam: procuravam a origem daquela música techno cujo refrão não era mais do que uma repetição automatizada da palavra "Ecstasy", a célebre droga do amor. Deparei-me com uma porta de madeira de proporções gigantescas. Não tinha dúvidas: a música vinha dali.
Dirigi-me para a maçaneta, mas uma velha manca com o cabelo cheio de farinha (ou seria cocaína?) surgiu das sombras e disse-me que aguardasse. Não consegui perceber as palavras que ela proferira, mas o gesto que fez com a mão foi elucidativo. Enquanto esperava, ela agarrou num pequeno objecto cilíndrico e fino que eu não percebi o que era, enfiou-o pela fechadura da porta e, ao olhar para ele, fez sinal para eu entrar. Percebi então do que se tratava: ela estava apenas à espera da temperatura ideal para me dar passagem. Empurrei a porta e dei alguns passos, sentindo um ar gelado a invadir os meus pulmões, que colapsaram sem sequer me pedir licença. Virei-me para trás para tirar uma fotografia à velha, mas ela desaparecera. "Estranho", pensei eu.
Caminhei por um corredor de paredes petrosas com velas instáveis a iluminar o caminho, até atingir um cortinado de veludo roxo. Puxei-o gentilmente para o lado e atravessei-o. Dei por mim numa sala cheia de mafiosos que se embebedavam numa orgia violenta, sorvendo cerveja directamente da torneira dos barris ou lambendo os corpos regados de bálsamo de algumas mulheres que por ali passeavam. Quando a minha presença foi notada, fez-se silêncio. Uma voz feminina chegou ao pé de mim e murmurou-me ao ouvido: "I want you to fuck me right now... Do it! Otherwise, they’ll kill you." Não tinha a mínima hipótese. Perante uma audiência embriagada que me lançava olhares ameaçadores, tive de me despir totalmente e penetrar uma rapariga que eu nem sequer conhecia.
Ela parecia satisfeita e sorriu ternamente, mas eu achei que ia rebentar quando os nossos olhos se cruzaram. Sentia-me terrivelmente envergonhado com o silêncio que nos rodeava e não conseguia pensar, mas algo instintivo e animalesco dentro de mim sabia exactamente o que fazer. Para trás e para diante, aquilo lá se foi desenvolvendo. Não conseguia ver a sua cara a contorcer-se, nem ouvir os seus gemidos, nem sentir o seu corpo a vibrar e a apertar o meu, nem cheirar aquele odor carregado de volúpia e ácida feminilidade. A única coisa que sentia era a minha boca seca, com a língua colada aos dentes. Precisava de líquido urgentemente. Então, murmurei: "Alus." Toda a gente se riu, mas eu insisti e gritei: "Alus, porra! Alguém me dá a puta de uma cerveja?" O bar em peso aplaudia e rejubilava sadicamente a cada palavra minha. Decidi então que o melhor era acabar com aquilo o mais depressa possível, antes que morresse desidratado.
Embalado pelo ritmo marcado pelas palmas da audiência, balancei a minha pelve cada vez mais depressa entre as suas pernas, até ao êxtase final. Soltaram-se gritos de euforia e soaram salvas de tiros de canhão. Consegui finalmente libertar-me, espalhando gotas do fluído esbranquiçado e brilhante pelo chão. Enojado comigo mesmo, vomitei a minha alma de um só jacto e fugi porta fora sem olhar para trás, saltando por cima de arbustos, evitando rochas e pisando enormes poças de lama, até que mergulhei de cabeça num lago escuro e gélido. Respirei de alívio, qual tubarão-martelo lançado de novo à água por um pescador mais compreensivo e conhecedor das coisas do mar. Quando voltei à tona, vi o céu mais belo do que nunca. As estrelas estavam irrequietas, dançando polkas naquele palco escuro sem fim. De quando em vez, uma estrela mais arrojada fazia alguns truques, deixando atrás de si um rasto luminoso e desaparecendo de seguida.
Ali fiquei, de barriga para o ar, não sei durante quanto tempo. Já o dia tinha nascido quando recuperei de novo consciência do meu corpo. Ao contrário da noite anterior, o céu estava limpo e o sol resplandecia. Tive de sair do lago e ir a correr até ao meu quarto; os palhaços já se tinham retirado para as suas tocas, mas cheguei mesmo a tempo de surpreender um insecto gigante que se preparava para abrir a minha garrafa de vinho do Porto. Tive de lhe espetar um pontapé no seu rabo couraçado e proferir uma série de palavrões, mas ele acabou por se retirar, resmungando contra a sua má sorte. Vesti umas roupas quentes e saí de novo, saltando pela janela.
Atravessei a planície verdejante, assobiando o "Grândola Vila Morena", quando me lembrei que não tinha fechado a porta. Perguntei a uma adolescente loira de olhos esverdeados que por ali passava se ela não poderia ir até ao meu quarto e fechar a porta, mas ela disse que tinha de acabar de tratar do seu jardim. Ofereci-me para a ajudar; ela olhou-me de alto a baixo e, torcendo o nariz, respondeu-me que preferia fazê-lo sozinha.
Inexplicavelmente ofendido, virei-lhe as costas e baixei as calças, num gesto pouco digno e até algo patético. Ela riu-se e disse-me que seria melhor esconder as minhas nádegas antes que o pai dela chegasse. Obedeci imediatamente e olhei à volta, com medo de ser surpreendido por algum senhor furioso de ancinho na mão. Ouvi de novo o seu riso; contudo, desta vez era um riso triste, que mais parecia um soluçar. Voltei-me para ela e verifiquei que eram efectivamente lágrimas que lhe corriam pelas bochechas pálidas. Aproximei-me, simultaneamente curioso e aterrado. Ela levantou os olhos, que já não eram verdes mas sim vermelhos, e pediu-me para me ir embora sem me despedir. Percebi imediatamente o que é que ela queria dizer. Eu também nunca gostei de despedidas.
Abraçámo-nos uma última vez, envolvidos pelo silêncio campestre. Quando a soltei, dei dois passos atrás. À medida que tudo se esfumava em bruma e incerteza, não conseguia tirar os olhos dela… porque sabia que nunca mais nos voltaríamos a ver.

Cristóvão Figueiredo

quarta-feira, setembro 22, 2004

primeiro vieram os fenícios. focinharam uma igreja. depois vieram os mouros. continuaram os ainda não portugueses. guerra. a igreja desabou em parte. nova construção. sobejaram pedaços de fenícios e mouros. houve gótico. houve o mestre de obras do Mosteiro dos Jerónimos a acrescentar os seus rendilhados de calcário. renascimento. mais tarde reconstrução. houve fenícios. houve mouros. ante portugueses. houve a maldita História. e aqui este facho a iluminá-la. houve fenícios. houve mouros. e este facho ávido de gasolina vítrea para destruir tanto palavreado de pedra.

e.e.
Implosão

as cabeças de trigo
entrelaçadas num novelo de silêncio
ventoso
um silêncio cheio de vontade
que o agitem que o animem
que o reanimem com soro dinamicamente estático

os alfinetes de cevada
focados no nevoeiro de neve manchada

um nevoeiro sedento de sonho
que seduz que transporta
que propaga o ataque cardíaco
em segundos

as cabeças de trigo
os alfinetes de cevada
e uma grande ferradura
de papa espessa
que atravessa a garganta
e a aperta e sufoca
como um edifício titânico
implodindo
(serenamente)
convulso

Álvaro Seiça Neves

(a partir de Paisagens do Silêncio, Renato Roque e Jorge Sousa Braga, 2004.)

domingo, setembro 19, 2004

FOME

UM DIA SENTEI-VOS DENTRO DE MIM
E DISSE: - TENHO FOME!

- TENHO FOME!
E DENTRO DA MINHA FOME ENCONTREI O AMOR:
O AMOR QUE, NÃO SEI PORQUÊ, TENHO REJEITADO
EM CADA UM DOS MEUS DIAS...

SINTO-ME INVADIDO POR UMA PROFUNDA DÍVIDA:
QUERO DAR!
TENHO UMA PROFUNDA NECESSIDADE DE DAR!

SINTO-ME SÓ:
NA LUZ QUE NÃO TRAGO,
NAS MÃOS QUE NADA POSSUEM,
DOS CORAÇÕES EM QUE NÃO ENTRO...

QUERO DAR:
PARA TODOS QUERO SER A SALVAÇÃO QUE NÃO SOU PARA MIM.

POSSO SER JÁ E AQUI: OU POSSO CONTINUAR A SER ESTE ANO!
UM NOIVADO, UM FUNERAL...
NÃO IMPORTA!
SÓ IMPORTA ESTA NECESSIDADE DE ME PARTILHAR!

SOU QUASE O MENDIGO CUJA MÃO FICOU, SÓ A MÃO FICOU...

TENHO FOME!
TENHO FOME DE ESPALHAR ESTA FOME!
ACREDITO ASSIM INAUGURAR-ME...

- MAS EU JÁ TENHO TUDO. DISSESTE.
MAS NÃO ERA ISSO...
EXPLIQUEI-TE ENTÃO A MINHA FOME.
EU QUERO DAR!
NÃO IMPORTA O QUÊ.
NÃO IMPORTA A QUEM.

SENTASTE-TE ENTÃO AO MEU LADO...
E TIVESTE FOME COMIGO.


in 27, Fotonovelas Poéticas, Ex-Ricardo dePinho Teixeira, Corpos Editora, 2004.

quinta-feira, setembro 16, 2004

sete dedos de mão

pensei em degolar sete dedos de mão. quatro da esquerda. três da direita. aleatoriamente. sete dedos de mão. tinha essa folha branca espaçosa debaixo dos olhos. ainda bem. não estaria agora aqui. não nestas letras. letras que enchiam os olhos na altura. não estaria agora aqui. estaria antes. estaria antes. estaria antes com os olhos degolados. sem letras. sem presente. só recordação de sete dedos de mão. sete letras vivas. muitas letras agora. amo-te mão. amo-te olhos. percebi que tudo não deixa de ser instante. tudo que julgamos presente e num segundo se desfaz. amo-te palavras. amo-te dedos.

e.e.

terça-feira, setembro 07, 2004

O sangue bombardeou-me a cabeça. Senti uma massa pesada, hoje. Foi quando espreitei para debaixo da cama, de tronco abandonado. Olhei e o fundo pareceu-me um grande e leve céu estrelado, tantas eram as penas que ali repousavam.
No limiar perscrutei, talvez, o sonho distante que todas as noites me vigia, escondendo-se, disforme, na sepultura do meu corpo.

e.e.
In memoriam

A fotografia é o alinhamento perfeito da cabeça, do olho e do coração.

Photography it´s the perfect alinement of the head, the eye and the heart.

Henri Cartier-Bresson
Agosto... é... a gosto... é a miséria, por isso, perdões aos mandriões.