terça-feira, fevereiro 22, 2005

caput - ocasional de arte

não comemora mas deixa aqui registado o facto fantasmagórico de hoje passar um ano desde a sua criação.
durante 1 ano publicaram-se textos neste blog de pessoas mais ou menos identificadas.
o programa estabelecido não protocolar mas mentalmente era abrir este espaço a todas as áreas de criação artística e pirómanas. o mesmo programa continua vivo e cheio de tentáculos invisíveis apesar da diversidade disciplinar não se verificar muito.
posto tal fardo, continua este lugar sem morada à disposição do cibernauta já familiar ou do ignorante em trânsito teclante, quer como criador quer como crítico:
artes plásticas
pedicultura
música
serradura
dança
cozedura
literatura
esvaziamento dos néctares envelhecidos em carvalho francês ou nepalês
arquitectura
bonsais
fotografia
e afins derivados ou não - dos quais não me recordo
eis algumas tendências que servirão de mote à colecção 2005.2006
deste estábulo das crinas grossas e aguçadas.

álvaro
1 dos manifestantes

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

poder-se-ia escrever acerca da imagem no espelho
da imagem no espelho

interrogação

algumas passadas em hélice pelas condutas da cidade
outras pelos elevadores de várias direcções cérebro
acima cérebro abaixo
consegue-se até recordar restos de palavras deixadas
nalgum piso mais visível mais visível
e a interrogação parecendo dar à estampa
uma barriga menos inchada
acontece que vai mesmo é insuflando ar desconhecido
para dentro da curva
passadas em hélice e volta-se volta-se
volta-se ao mesmo com outros restos
e surge então a tese poética arfando vaidade sabendo porém
que de pus e bolor está ela prenhe:
a imagem no espelho esquece-se que diz nada
um nada sereno mas um nada
que autoridade habilitou de credenciais esse objecto nomeado espelho?
avisem-no rapidamente!
mas quem? o quê? quem?
não bastasse já o espelho mais o contra-espelho e o do lado direito e esquerdo e oblíquo e horizontal e vertical e diagonal e outras possibilidades não academicamente registadas e sobre as quais não apetece escrever
seriam vários ângulos da mesma face daquele rosto insondável
sabendo-se real na simples imagem na simples imagem concreta
concreta de vidro tão concreta como ser imagem e ser espelho e ser imagem debaixo da pele do espelho e realmente falsa como esse rosto
esse rosto insondável insondável
e então era um cubismo
mas não aquele cubismo de feira
aquele cubismo vendido aos pacotes por professores e certo escol e outras entidades riquíssimas para fazer um bom kebab de sabedoria
não se fala nesse
fala-se da essência de um cubismo presente
claro que como tudo seria insuficiente
percebe-se não é?
o que se prende à fórmula e se deixa permanecer no saco-cama de um horizonte segmentado esse bom esse já era
sabem?
como as bolas de ténis: havia uma marca era de facto era
no primeiro jogo desapareceram todas: mas que interessa?
memórias
sempre iguais: a perturbar qualquer momento
então: não só uma essência cubista
mas
sobreposições isso: sobreposições!
porções não mensuráveis de imagens sobrepostas num caos mais ou menos
equilibrado: seria o êxtase não?
ou então um espelho rachado
rachado há muito por um bacon qualquer
um bacon fracturado dos olhos em transe consciente
estilhaçado no seu sangue
esquartejado e ainda assim revendo-se
isso: seria assim!
um cubismo muralhado
um espelho desfeito
e um sobreposicionismo ah! sim!
só sobreposições: imagem em cima de imagem
mais imagem e ainda outra outra imagem
e teríamos o espelho traseiro acenando todo o dia uma imagem que desconheceríamos
mas seria nossa
seria a imagem absoluta de um absurdo total
um absurdo sempre variável e só nosso só nosso
e não esta merda que todas as madrugadas ao acordar surge no espelho e
tonitroando
troça: cabrão! mais um dia com esse focinho alegre não é?
e de facto é: é o focinho envelhecendo vaidoso
da sua cobardia constante

aseiçaneves

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Um Conflito de Prioridades Suburbano

Havia ânsia e apreensão no olhar dela. Ele inclinava a cabeça e mirava-a semicerrado, talvez tentando perscrutar algum sinal de fraqueza. O olhar traía-a e a sua respiração era ofegante, mas mantinha-se firme na sua compostura, decidida a não voltar atrás no que acabara de dizer. O silêncio instalado parecia ecoar as palavras expelidas sem contenção.
Estavam os dois sós naquele beco perdido no tempo e no espaço, num sítio onde só a eles lhes era permitido permanecer. A luz fraquejava por cima das suas cabeças, iluminando-lhes as poses teatrais. As suas sombras não se mexeram durante uma eternidade aparente, até que ela cedeu. Baixou os olhos como que para se esconder, magoada com os seus próprios sentimentos. Ela nunca o odiara tanto. Só ele conseguia faze-la sentir-se tão mal consigo mesma ao ponto de desejar não existir e ser outro alguém. Morrer.
Ele continuava fixo num outro rosto que não o dela. Os seus olhos não viam o que estava à sua frente, mas sim o significado do que ouvira. Na verdade, nunca tinha pensado naquilo. A sua primeira reacção foi de indignação, mas agora parecia fazer sentido. Ela tinha razão. Toda a razão. Hesitou em dizer-lho. E como sempre acontece quando se hesita, as palavras saíram-lhe tarde demais.
Ela virava já as costas e afastava-se, não tanto para fugir dele mas sim das lágrimas que agora lhe assomavam aos olhos em golfadas. Corria sem pensar, dominada por uma dor desconhecida que não era identificável. Doía, apenas; doía tudo. Rasgando-lhe as roupas, perfurando-lhe as vísceras, desfazendo-lhe os ossos. E quanto mais se apercebia disso, mais lancinante a dor se tornava.
Atordoado com a reacção inesperada, ele demorou algum tempo a dar o primeiro passo de perseguição. Mas assim que o deu, correu com quantas forças tinha. Via-a desfocada pelos olhos também humedecidos, e tudo o que ele queria agora era não a perder. Nada mais interessava. Tinha de pedir-lhe desculpa e abraçá-la.

Os passos afastam-se do beco, de volta ao mundo real. A luz mingua contra as paredes escurecidas pelos fumos citadinos. De um canto onde só a escuridão alcança chega o resfolegar de um corpo virando-se sobre si mesmo, maltratado e abandonado por todos e por nenhum. Do seu casebre de cartão carcomido e mantas bafientas, solta-se um suspiro de desprezo:
- Miúdos...

Cristóvão Figueiredo

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

estaleiro

é uma questão de peças. de haver ou não haver. de se safar ou não safar. uma questão de peças. o estaleiro humano. a oficina. e o corpo já suspira. o corpo é máquina. e são os órgãos e os tubos metálicos a formar andróides. cyborgs. a carne atarraxada às próteses. e são os órgãos mergulhados na cirrose. as glândulas bebendo olhos. o coração. o fígado. peças. peças órgãos furando os tecidos musculares. o corpo máquina. o corpo na oficina. o copo corpo maltratado caindo no estaleiro. deitado para arranjar. pronto para a permuta. o corpo em permanente. o corpo. o corpo em permanente transplante. em transhepático. em transoftálmico. o corpo acidente. imediato hospital. imediato em instrumentos. instrumentos de cisão. instrumentos entesourados. agrilhoando-se. o corpo acidente imediato hospital. hospital central que é preciso. banco de dadores. surpreso? e descansem os familiares que ninguém sabe. e descanse o acidentado que vivo ou morto também não sabe. a lei é subterrânea. coisa pós 25 de abril. a lei é lei. dizem os que sabem e os que não sabem. não sabem? mas descansem. o corpo vai a funeral. a câmara ardente. diria o torga. as virilhas coçadas. o corpo vai a funeral ali deitadinho. as pálpebras bem cosidinhas com fio grosso de costurar perus. de costurar peitos esventrados. e as pálpebras bem cosidinhas e as cavidades oculares vazias. rapadas. e as pálpebras cosidas. e os familiares ignorando. ignorando.
que é feito dos olhos? bom. sabem... os olhos estão no banco de dadores. desculpem lá qualquer coisinha.
e antes já olhos arrancados. já olhos em líquido de krön. já nervos cortados à bisturizada. e salta olho daí para fora. com cuidadinho que a córnea é ouro. a córnea é ouro. é já ouro visual de outro. de outro. e tudo suturado. bem suturado que assim ninguém nota diferença.
e as agulhas perfurando os tecidos enrijecidos. e outro bloco operatório. e o cheiro a matadouro. e a náusea a tentar ser abafada. abafada. que a corrente de ar é forte e estão todos lá fora à espera e esta merda toda mais parece um talho. e outro corpo estendido. outro corpo. vegetava através da máquina. mas olha: sinal no écran contínuo. o cérebro já morto. clínico. clínica. morte clínica. ouviram? malta! morte clínica! está a mexer! rápido! o cérebro está morto! rápido que o coração ainda bate! bate. propulsa-se e esse fígado dá um jeitaço. anda lá pá! mexe-te! rápido! retira rápido! não penses no coração!
e o hospital estaleiro em acção. o corpo reformando-se máquina. o corpo na oficina visceral. e as cirroses andantes contentes contentes. contentes porque o transplante hepático dá um jeitaço.

e.e.

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

LAB 11 . Tiago Guedes


No LAB os artistas falam do que ainda não sabem. Aquilo que pensam saber, será útil para dar início aos trabalhos, mas aquilo que verdadeiramente nos interessa é que venha à superfície o que se encontra nas entrelinhas desse saber. Para estimular e provocar essa qualidade, acompanhamos os artistas em residência na evolução dos seus processos. No final de cada residência, cria-se um momento de confronto com o público, momento delicado e frágil para objectos tão voláteis, mas tão necessário para que um olhar ainda virgem e bruto possa questionar, e se possível desfazer, quaisquer ideias que tenham entretanto sido construídas.

O projecto do Tiago Guedes recebeu o acompanhamento artístico de João Fiadeiro (coreógrafo, bailarino e director artístico da RE.AL), João Queiroz (pintor) e Francisco Tropa (artista plástico).

ENTRADA GRATUITA
Lotação limitada, reservas aconselhadas
dia 5 FEVEREIRO _ 18H00


ATELIER RE.AL

RUA POÇO DOS NEGROS Nº55_1200-336 LISBOA TELF: 21 390 92 55 FAX: 21 390 92 54 E-MAIL: real.j.fiadeiro@mail.telepac.pt