quinta-feira, março 18, 2004

O vício

3 horas!
em vício
da violência parda do vazio

nas águas esburacadas
por plátanos enroscados em planície
um torpor de vício amarelado
da violência parda do vazio

chamo as pálpebras do sorriso
chamo os corais desta língua cerrada
e nisto...
mas
o quê?
miragem
não chamo mais
pálpebras do sorriso?
sorriso! nas pálpebras da ilusão
o Ministro da Cultura
ante plátanos de pedregulhos
boa-tarde Ex.mo Sr. Ministro!
boa-tarde
não chamo mais

o Sr. diz trazer a chave
penso...
chave?
da violência parda do vazio?
não Sr. Ministro!
do seu vício também...

Álvaro Seiça Neves

terça-feira, março 16, 2004

Angústia

Tortura de pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!

E não se quer pensar!... e o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Querer apagar no céu - ó sonho atroz! -
O brilho duma estrela, com o vento!...

E não se apaga, não... nada se apaga!
Vem sempre rastejando com a vaga...
Vem sempre perguntando: "O que te resta?..."

Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!

Florbela Espanca
A HIDRA



(VENDO PASSAR SEMINARISTAS)

Olhai, vede-os passar em legiões escuras,
Intonsos, apesar de todas as tonsuras,
Com um ar imbecil, caliginoso, estranho,
Marcados a tesoira assim como um rebanho,
E envoltos em cruéis balandraus de entremez,
– As lobas, sob as quais há lobos muita vez!...
Ó galuchos da Fé, recrutas do Divino,
Que um chocalho de bronze hiperbólico – um sino –
Faz erguer, faz dormir, faz deitar, faz andar,
Eu não sinto por vós, marionnettes do altar,
Nem ódio nem rancor. Sois vítimas. Loiola
Dobra-vos a cerviz com a canga da estola,
E jungindo-vos, bois nocturnos, ao arado,
Rasga convosco o negro e fúnebre valado
Aonde o vosso Deus semeia para a infância
A flor da estupidez e o trigo da ignorância.
A Igreja, a cortesã sensual de ventre obeso,
Ontem mulher de Cristo e hoje mulher de Creso,
Para a rapina odiosa e vil de que se nutre,
Mochos, deu-vos a calva ortodoxa do abutre!
Matilha de Leão XIII, a vossa presa é o mundo.
Tartufo, bode obsceno e teólogo profundo,
Ensina-vos, conforme o ritual mais perfeito,
A cruzar, como S. Francisco, as mãos no peito,
Sob a sotaina arqueando a gravidez das panças,
A impor jejuns, benzer caixões, salgar crianças,
A grunhir, a ladrar sermões, missas cantadas,
E a escriturar o Céu por partidas dobradas.
Não vos odeio, não, pálidos salafrários;
Vós sois unicamente os comparsas mortuários
Do papa, esse Barnum que assombra a multidão,
Com o Espírito Santo a vir comer-lhe à mão,
Satanás a frigir (sarrabulhada trágica!)
Heresiarcas de estopa em caldeirões de mágica,
E Jeová, um urso estúpido e cruel,
A lamber-lhe a sandália, a babujar-lhe o anel,
E a ameaçar furibundo este mundo precito
A rufos de trovões no tambor do infinito.

A Igreja é uma serpente escura, bicho imundo,
Gigantesco reptil que dá a volta ao mundo,
E em cujas espirais, ébrias de raiva insana,
Um Lacoonte imortal – a consciência humana,
Há séculos se estorce em convulsão atroz.
Os elos desse monstro implacável sois vós,
Sacristas. A cabeça é o papa.
Ora as serpentes
Têm a força na cauda e o veneno nos dentes.


Guerra Junqueiro
Aqui se larga um grupo de poemas em torno de Hidra.
Suas afinidades e suas derivações...

terça-feira, março 09, 2004

Rã (II)

deRãme
será toda a vida assim...

uma artéria
um vaso
uma veia
uma Rãmificação
Rãrefeita
um deRãme
estrangulado
a desaguar
em erupção


Uma rã

Era assim
Eu era assim...
Livre
Como uma rã
De mente vã
Hã?
Eu era assim...
Vivo
De papo rijo
E alma

Saltitava
Leve
Como lã
Hã?
Eu era assim...
Incerto
Como vento
Uma rã
E muito lento

Uma rã

Perna longa
E mente vã
Eu era assim...
Eu era livre...
Fui livre.

Agora não.








Zã.

terça-feira, março 02, 2004

A verdade é um saco de não mágico,
o vasculhar é contínuo mas o esgravatar deixa sempre as unhas em sangue,
sem cura e sem encontro.
ou pegadas de gelo ao sol?

segunda-feira, março 01, 2004

cascalho sonâmbulo

entre cascalho e urros enchidos
toldava-se o chão da basílica

entre os dias da tarde
entrou um espasmo de Luz
que pisou todas as almas
arrefecendo diante daquele odor
de velas derretidas
a queimar caixões em ravina

na senda do divino
as mãos traçavam rotas de ruína
traçavam gelados clamores
imitando seus sonâmbulos vizinhos
e as pedras cindidas

entre balaustres e cornijas comidas
rolou um urro...
era Ele – o espasmo de Luz
em brasa em fogo raivoso
vomitando o cheiro de velas derretidas
e diante dos ajoelhados
rolou um urro...

acabara de pisar o cascalho
daquelas almas adormecidas.

Álvaro Seiça Neves