terça-feira, março 16, 2004

A HIDRA



(VENDO PASSAR SEMINARISTAS)

Olhai, vede-os passar em legiões escuras,
Intonsos, apesar de todas as tonsuras,
Com um ar imbecil, caliginoso, estranho,
Marcados a tesoira assim como um rebanho,
E envoltos em cruéis balandraus de entremez,
– As lobas, sob as quais há lobos muita vez!...
Ó galuchos da Fé, recrutas do Divino,
Que um chocalho de bronze hiperbólico – um sino –
Faz erguer, faz dormir, faz deitar, faz andar,
Eu não sinto por vós, marionnettes do altar,
Nem ódio nem rancor. Sois vítimas. Loiola
Dobra-vos a cerviz com a canga da estola,
E jungindo-vos, bois nocturnos, ao arado,
Rasga convosco o negro e fúnebre valado
Aonde o vosso Deus semeia para a infância
A flor da estupidez e o trigo da ignorância.
A Igreja, a cortesã sensual de ventre obeso,
Ontem mulher de Cristo e hoje mulher de Creso,
Para a rapina odiosa e vil de que se nutre,
Mochos, deu-vos a calva ortodoxa do abutre!
Matilha de Leão XIII, a vossa presa é o mundo.
Tartufo, bode obsceno e teólogo profundo,
Ensina-vos, conforme o ritual mais perfeito,
A cruzar, como S. Francisco, as mãos no peito,
Sob a sotaina arqueando a gravidez das panças,
A impor jejuns, benzer caixões, salgar crianças,
A grunhir, a ladrar sermões, missas cantadas,
E a escriturar o Céu por partidas dobradas.
Não vos odeio, não, pálidos salafrários;
Vós sois unicamente os comparsas mortuários
Do papa, esse Barnum que assombra a multidão,
Com o Espírito Santo a vir comer-lhe à mão,
Satanás a frigir (sarrabulhada trágica!)
Heresiarcas de estopa em caldeirões de mágica,
E Jeová, um urso estúpido e cruel,
A lamber-lhe a sandália, a babujar-lhe o anel,
E a ameaçar furibundo este mundo precito
A rufos de trovões no tambor do infinito.

A Igreja é uma serpente escura, bicho imundo,
Gigantesco reptil que dá a volta ao mundo,
E em cujas espirais, ébrias de raiva insana,
Um Lacoonte imortal – a consciência humana,
Há séculos se estorce em convulsão atroz.
Os elos desse monstro implacável sois vós,
Sacristas. A cabeça é o papa.
Ora as serpentes
Têm a força na cauda e o veneno nos dentes.


Guerra Junqueiro

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