quarta-feira, abril 14, 2004

O suicída que cometeu parricídio

(…)
- Vejo pela tua cara que já decidiste. Para que me vens pedir opinião?
Wolfgang não responde. Está de pé, a olhar pela janela. Lá fora, o céu cinzento ameaça descarregar as suas mágoas. Não há movimento na rua. As casas vizinhas estão adormecidas, como se toda a cidade estivesse hibernando, embalada pelos primeiros dias do rude Inverno austríaco. Apenas a pequena sala parece estar ciente da sua existência.
- Ainda não decidi – responde, sem desviar o olhar.
- Mas vais fazê-lo.
- E porque não? – Irritado, Wolfgang fixa os olhos do seu pai. – Julgas que eu quero? Achas que é por minha vontade ou por teimosia? Peço-te; dá-me apenas um motivo e eu juro que desisto. Só preciso de uma palavra tua que justifique a tua posição, e eu renuncio a todas as minhas pretensões.
Leopold suspira. Esfrega as suas mãos pela cara, passando pelo queixo, subindo arduamente até aos olhos e regressando rente ao nariz. Lentamente, ergue-se da sua cadeira. Dirige-se a um velho armário, ficando com uma atitude contemplativa à sua frente, de mãos cruzadas atrás das costas. Wolfgang aproxima-se por trás do pai e assume a mesma pose. Finalmente, Leopold quebra o silêncio:
- Abre o armário.
Wolfgang obedece. Ao abri-lo, todo ele geme, como que manifestando o seu desagrado por perturbarem o seu sono secular. Wolfgang dá o passo atrás, oferecendo espaço ao seu pai. Leopold retira uma caixa de sapatos que se encontra por baixo de um casaco bafiento. Abre-a e passa-a para as mãos do seu filho.
- Não és uma criança. Faz o que achas que tens de fazer.
Wolfgang tem uma expressão carregada, mas acena em acordo. Beija o pai e retira-se da sala. Leopold vê-o a fechar a porta. Enquanto se dirige de novo para a sua cadeira, ouve os passos de Wolfgang a subir as escadas. Senta-se, cansado e derrotado, sentindo o seu filho no quarto que se situa por cima. Mas ao fechar os olhos, já não ouve o tiro que Wolfgang dispara contra a sua cabeça, nem o grito de Anna Maria. Também não se apercebe da agitação que se criou no andar de cima, quando todos descobrem o corpo do jovem Wolfgang. E não vê a sua mulher a entrar pela sala, esbaforida e lavada em lágrimas, gritando:
- Está morto!


Cristóvão Figueiredo

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