terça-feira, março 22, 2005

Comunicação e Poesia

por Álvaro Seiça Neves [Junho 2004]

Como nomear a fabulosa árvore sem morte sobre a qual, pássaros sonâmbulos, acordamos perpetuamente em atraso e adormecemos apressadamente em avanço?

Eduardo Lourenço in Tempo e Poesia 1.



1. Introdução

É objectivo deste ensaio proporcionar uma análise entre comunicação e poesia nos dias que correm. Estabelecer, tanto quanto possível, uma aproximação ao tema da Comunicação na sociedade actual e, posteriormente, propor a palavra poética como veículo de Comunicação supremo.

2. Comunicação

Com o advento, na última década, de uma série de novos meios de comunicação artificiais, o meio social sofreu tremendas alterações. Nasceu uma nova era, consubstanciada em produtos de grande difusão – internet, telemóvel, e outros derivados electrónicos.
De facto, a revolução electrónica que muitos escritores anteviram há mais de quarenta anos, como William S. Borroughs, Aldous Huxley, George Orwell, entre outros, chegou, em parte. A erupção de uma rede espalhada por todo o mundo e em todo o lado – a internet – possibilitou um maior e mais rápido acesso a um infindável conjunto de serviços. Especializados ou não, estes serviços constituem muito do nosso quotidiano. Não só a web mas, também, outros tipo de redes cibernéticas e malhas ópticas, corromperam, em certa medida, a forma de mediação do ser humano com os objectos em volta e consigo mesmo. Proliferam os sistemas de Multibanco, a televisão por cabo e tantas significações de conteúdo expansivo. Certo será dizer que a quantidade de informação com que nos debatemos é, sem dúvida, angustiante. Isto porque o Homem se vê cada vez mais compelido a se fragmentar em tanta vertigem de apelos, visuais e intelectuais, e, paralelamente, benéficos ou não. A quantidade de informação e alta velocidade a que fomos sujeitos não significa, contudo, qualidade. E, surpreendentemente, ou talvez não, a quantidade desqualificou o nosso habitat. Informação e comunicação, crescendo exponencialmente, significam tão-só a diminuição de si próprias. A matéria com que nos debatemos é sensível. Porém, não podemos deixar de expressar a reflexão constante a que nos obriga este fenómeno.
Vivendo numa sociedade de informação, o Homem vê-se perante a inviabilidade de escolher. Ou melhor, a liberdade aparente com que se confronta é substituída pela concreta prisão em que se vê mergulhado. Sociedade de desinformação, diríamos. Todos os meios a que tem acesso estão, desde logo, direccionados para um pré-visionamento concebido. A liberdade concedida é controlada e previamente seleccionada por um Maestro que nos mostra aquilo que Ele quer mostrar. Passa-se isto na televisão, na programação proposta aos telespectadores, nos noticiários (quando a câmara x regista o momento y em vez do momento z),... . O alcance do noticiário em directo desvirtua o olhar humano, ou antes, torna virtual um mundo tido como real. Daí para a navegação num tempo concebido totalmente em fundamentos paralelos – virtuais – resulta que se apressa o passo e se descortina o espaço relativo em que parece existir a imensidão cibernética. Levanta-se, portanto, a questão dos limites – os limites e as fronteiras. Mas neste caso, não nos suscita o tema tanta preocupação. O que importa reter é o excepcional condicionamento em que estamos inseridos, apesar da euforia reinante.
Mas, se queremos tratar de comunicação, teremos que averiguar outras variáveis. Edward T. Hall, no ensaio A Dimensão Oculta, estabelece relação entre Cultura e Comunicação. O espaço social e pessoal e a percepção pelo homem destes dois elementos levou à formulação de um termo – proxémia. Define o autor: "neologismo que criei para designar o conjunto das observações e teorias referentes ao uso que o homem faz do espaço enquanto produto cultural específico."2. A comunicação, que surge como fundamento, justificação ou suporte da cultura e da própria vida, deriva numa força resultante de vários factores. O que é interessante retirar das suas análises, neste contexto, dado que a partir das investigações proxémicas chegou à conclusão que "indivíduos que pertencem a culturas diferentes, habitam mundos sensoriais diferentes"3, é o seguinte: "a própria percepção que o homem possui do meio circundante é programada pela língua que fala, exactamente como um computador."4. Deste postulado retiramos a noção de um homem preso ao seu organismo, preso ao seu aparelho vocal e dominando um espaço não visível que se afigura como uma limitação, a nível linguístico e a nível comunicativo. Discorramos sobre a nomeação das coisas, a linguagem e a auto-reflexividade latente, a interrogação necessária para questionar o estado inicial das coisas, e teremos a linha programática de Alberto Caeiro.
Estamos perante uma conjuntura que nos transporta para o imediato, para o controlo do indivíduo, para um sistema de comunicação, consequentemente, em ruína. O telemóvel iniciou, com maior frequência, uma deficiência que parecia oculta, ou menos explícita. O ser humano passou a falar, a falar em todo o lado, a toda a hora, para qualquer local, independentemente da distância e da margem geográfica. Inventara-se a telefonia. Sim, uma revolução indiscutível. Mas a portabilidade deste meio, a internet, as mensagens via e-mail, os chats e os fóruns de discussão, a "produção e transferência de mensagens"5 – no dizer de Gérard Leclerc – que se acelerou vertiginosamente, alterou de modo significativo a percepção da comunicação. O ser humano passou a falar, a falar incessantemente. Mas terá, porventura, passado a comunicar? Parece-nos que a resposta é soberanamente negativa. O ser humano encontra-se mais ausente, mais vazio, falando de tudo, mas sem nada para falar, acorrentado a um imaginário esgotado e empurrado para as grades da segregação social se assim não o fizer – se não falar, se não falar, se não falar interminavelmente... se não participar activamente no corrupio de nulidade total.
Assistimos a um crescente número de veículos com a finalidade de comunicação, quando, fruto do seu modus operandi, se revelam, eles mesmos, objectos de incomunicação.
Como é sabido, a incomunicação não é uma doença nem do final do séc. XX, nem de todo o séc. XX, nem de algum tempo ou lugar – é de sempre e de todo o lado. A realidade portuguesa não escapa entre as tenazes garras deste abismo incolor. Pactua, como todas as outras, onde a linguagem sonora ou silenciosa seja mediação. A Metamorfose, de Franz Kafka, símbolo desse vazio, dessa barreira entre os seres, sentido de universos distintos, demonstra fortemente a possibilidade desse constrangimento.
Passemos, pois, à relação entre Comunicação e Poesia.



3. Poesia

A palavra poética – sempre no limiar de si mesma – nos subtrai à dissolução, abrindo-nos de chofre as cem portas do Instante, nossa pátria ilimitada e natural.

Eduardo Lourenço in Tempo e Poesia 6.

Quando Franz Boas, Edward Sapir e Leonard Bloomfield estudaram as diferenças dos sistemas linguísticos – o indo-europeu, os índios da América e os esquimós –, perceberam a independência de cada sistema. Cada família linguística mostrava-se como um "sistema fechado com as suas próprias leis"7 – "O linguista devia, por conseguinte, evitar cuidadosamente projectar as regras implícitas da sua própria língua na língua estudada."8. Tentando efectuar um paralelismo com a Literatura e a sua Crítica, percebemos a pertinência da questão.
A Literatura tem o seu cânone estabelecido e remodelado ao longo dos anos. Quando algo não classificável aparece, a posição é, habitualmente, de exclusão ou integração moderada. O sistema literário constitui-se como um todo e não como uma frase gigante de sintagmas. O retalho, apesar de aliciante, não deveria ser apetecido. Não enquanto marginalização, enquanto rejeição pseudo-ponderada que elimine tudo o que não se ajuste ao anteriormente conhecido. O limite da Literatura é ela não ter limite. A fronteira, enquanto gaveta, proporciona o erro. É necessário, portanto, furar a Muralha de Tróia dos géneros e modos da Literatura e, mais especificamente, da poesia.
A Crítica, quando em presença de uma nova forma de arte – quer seja na música, nas artes plásticas, na dança ou na literatura –, deve evitar cair na tentação de projectar as regras das suas estruturas nas regras das estruturas estudadas. Queremos com isto explicitar o seguinte: o crítico deve, como o linguista, em certo sentido, quebrar as regras de estudo e análise anteriormente aplicadas para se lançar na criação de novas regras, procurando-as na estrutura do Texto desconhecido. Se a função do crítico, no âmbito da literatura, é tornar explícito aquilo que está implícito (segundo Harold Bloom), pressupõe-se que tente vislumbrar o implícito do novo texto em cada texto, procurando não recusar imediatamente mas sim compreender o processo do fazer.
Após esta digressão, convém centrarmo-nos no tema: Poesia. "Que linguagem pode servir à nomeação da realidade que somos senão aquela que por antonomásia já nos é devolvida como suprema Criação?" – pergunta Eduardo Lourenço. E a concentração da resposta concede-nos uma linha de acepção fulcral para o ensaio a que nos propomos – "É poeticamente que habitamos o mundo ou não o habitamos."9. A comunicação será uma apropriação do sentido da palavra, servida pela linguagem, e confrontada com a necessidade de uma distância de liberdade coerente. No âmago do estar, quer nos parecer sensato pensar num ambiente predominantemente poético, no espaço entreaberto da comunicação. "De um mundo submetido à divisão e à morte a palavra poética faz uma esfera que se reenvia de cada ponto o prodígio simultâneo das suas cintilações"10, acrescentamos, parafraseando Lourenço. Reforçamos a intenção de ver na palavra poética o acto etéreo de comunicação, de alheamento e expansão sensorial – "Só a palavra poética é libertação do mundo."11.
Confronte-se o primeiro capítulo – onde referenciámos as diferentes tipologias de vazio contemporâneo, decorrentes dos meios tecnológicos e da fabricação individual de uma consciência de massas – com o seu motivo expresso de compreender o fenómeno de incomunicação existente e com a expressão de Lourenço – "mastigação discursiva do mundo"12 – e combinaremos a súmula dos nossos propósitos. Confronte-se ainda: "O discurso do mundo não se encontra apenas corrigido ou voltado ao avesso. Encontra-se suspenso e ao mesmo tempo em estado de suprema aceleração."13. Inquietante, já que nos assimila de forma devoradora e acelerada.
O aprisionamento ao sistema comunicativo tornado homogéneo dispara em direcção a cada indivíduo – "Na mais idealista das filosofias nós continuamos ainda prisioneiros do mundo. E tanto mais prisioneiros quanto maior é a convicção de estarmos libertos."14, refere Lourenço.
Tencionámos, ao aproximar o carácter da Poesia do da Comunicação, reagir contra este influxo de nevralgia adormecida em que vive a sociedade. Neste momento frágil de glaciação ardente, o intuito não é definir a Poesia contemporânea, é sim estabelecer a ponte desejável entre a Poesia e a comunicação que deve desempenhar, como aproximação de uma solução possível. Segundo Lourenço, "(...) a poesia suscita em todos os homens, nem que seja uma só vez na vida, um começo de metamorfose semelhante à do autêntico amor (...)"15. É esta metamorfose, o acordar de uma apatia instalada, que nos empolga. Defendemos a Poesia como comunicação, a Poesia como escadaria da compreensão humana. Defendemos, não de modo romântico mas sim comunicativo, a Poesia como voz aguda da (in)consciente elevação do ser. Pretende-se a acção, a ebulição face ao crepitar do conhecimento. Assim, "De inofensiva, a poesia converte-se na mais suspeita das manifestações humanas, na mais perigosa de todas as criações."16.



Anexos

1. Notas

1 – Eduardo Lourenço in Tempo e Poesia, p.34.
2 – Edward T. Hall in A Dimensão Oculta, p.11.
3 – Ibidem, p.13.
4 – Ib., p.12.
5 – Gérard Leclerc in A Sociedade da Comunicação: Uma Abordagem Sociológica e Crítica, p.10.
6 – Eduardo Lourenço, op. cit., p.36.
7 – Edward T. Hall, op. cit., p.11.
8 – Idem, idem.
9 – Eduardo Lourenço, op. cit., p.35.
10 – Ibidem, p.36.
11 – Ib., p.38.
12 – Idem, idem.
13 – Id., id..
14 – Id., id..
15 – Id., p. 40.
16 – Id., id..


2. Bibliografia

2.1. Activa

HALL, Edward T. – A Dimensão Oculta, Relógio D’ Água, Lisboa, 1986.
LECLERC, Gérard – A Sociedade da Comunicação: Uma Abordagem Sociológica e Crítica, Instituto Piaget, Lisboa, 2000.
LOURENÇO, Eduardo – Tempo e Poesia, Gradiva, Lisboa, 2003.
SÁÀGUA, João – Lógica, Linguagem e Comunicação, Colibri, 2002.

2.2. Carácter Geral

RUBIM, Gustavo – Arte de Sublinhar, Angelus Novus, Coimbra, 2003.

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