Um Conflito de Prioridades Suburbano
Havia ânsia e apreensão no olhar dela. Ele inclinava a cabeça e mirava-a semicerrado, talvez tentando perscrutar algum sinal de fraqueza. O olhar traía-a e a sua respiração era ofegante, mas mantinha-se firme na sua compostura, decidida a não voltar atrás no que acabara de dizer. O silêncio instalado parecia ecoar as palavras expelidas sem contenção.
Estavam os dois sós naquele beco perdido no tempo e no espaço, num sítio onde só a eles lhes era permitido permanecer. A luz fraquejava por cima das suas cabeças, iluminando-lhes as poses teatrais. As suas sombras não se mexeram durante uma eternidade aparente, até que ela cedeu. Baixou os olhos como que para se esconder, magoada com os seus próprios sentimentos. Ela nunca o odiara tanto. Só ele conseguia faze-la sentir-se tão mal consigo mesma ao ponto de desejar não existir e ser outro alguém. Morrer.
Ele continuava fixo num outro rosto que não o dela. Os seus olhos não viam o que estava à sua frente, mas sim o significado do que ouvira. Na verdade, nunca tinha pensado naquilo. A sua primeira reacção foi de indignação, mas agora parecia fazer sentido. Ela tinha razão. Toda a razão. Hesitou em dizer-lho. E como sempre acontece quando se hesita, as palavras saíram-lhe tarde demais.
Ela virava já as costas e afastava-se, não tanto para fugir dele mas sim das lágrimas que agora lhe assomavam aos olhos em golfadas. Corria sem pensar, dominada por uma dor desconhecida que não era identificável. Doía, apenas; doía tudo. Rasgando-lhe as roupas, perfurando-lhe as vísceras, desfazendo-lhe os ossos. E quanto mais se apercebia disso, mais lancinante a dor se tornava.
Atordoado com a reacção inesperada, ele demorou algum tempo a dar o primeiro passo de perseguição. Mas assim que o deu, correu com quantas forças tinha. Via-a desfocada pelos olhos também humedecidos, e tudo o que ele queria agora era não a perder. Nada mais interessava. Tinha de pedir-lhe desculpa e abraçá-la.
Os passos afastam-se do beco, de volta ao mundo real. A luz mingua contra as paredes escurecidas pelos fumos citadinos. De um canto onde só a escuridão alcança chega o resfolegar de um corpo virando-se sobre si mesmo, maltratado e abandonado por todos e por nenhum. Do seu casebre de cartão carcomido e mantas bafientas, solta-se um suspiro de desprezo:
- Miúdos...
Cristóvão Figueiredo
quarta-feira, fevereiro 09, 2005
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