segunda-feira, maio 31, 2004

Mutação

entra no corredor frigorífico
o outro corpo talvez
espero cá fora. com receio.
há avisos de claustrofobia náuseas
pesadelos brancos.
há avisos. espero cá fora.
o outro corpo percorre os plásticos
cristalizados.
surpreende-o o nevoeiro imposto
as vozes difusas da manhã
o alvoroço mudo da madrugada.
desintegra-se em partículas
de plasma humedecido
e injecta-se de vazio frio.
no calor da descoberta
respira. respira subatomicamente
e caminha.
observa uma luz exterior que se projecta nos confins do espaço.
e caminha. perde as referências.
os seus outros amantes dispersam-se.
vestidos de preto perdem-se estonteados
no horizonte branco.
perdem-se. perde-se. estonteado.
e caminha
respirando um doce pó de amianto.
magnetizado pela bruma fecha os olhos.
abre-os num ímpeto claro
com as retinas coladas ao vidro.
o exterior é o seu interior
e nisto
perde-se novamente.
a bruma é denso pensamento.
tempo retido na aurora.

controlada a fobia branca
encolhe-se para a saída.
mas a sala ilimitada dispara
e é metralhado por um silêncio
gritante.
flashes ambíguos retalhados
de espuma. agonia esparsa
que se multiplica na espiral escura
dos seus olhos fechados. agonia. intermitente.
respira o passado sobreposto
e ali parado deixa-se engasgar
pelos cristais estroboscópicos
e costura uma passagem interior
soluçando tempo
e sente-se como uma mosca
dentro de uma lâmpada de néon.

despe o terror confuso de estar
na lama escorregadia do passado
e atira-se
qual fera enjaulada
para a porta final.
cá fora espero-o.
há avisos e pesadelos brancos
em convalescência.
vejo-o contra o vidro e grito.
nesse momento recordo
como uma cassete a rebobinar
toda a viagem que descrevi.
acordo estatelado frente à sala.

o caminho é mutação.
respiro triunfante a unidade.
o outro corpo talvez
uniu-se a mim.
cá fora sou condicionado e orgânico
mas sei
agora
que o meu interior é experiência sem fim.

Álvaro Seiça Neves

(A partir de Dazed & Confused, João Paulo Feliciano, 2004.)

segunda-feira, maio 24, 2004

Polegar

Agora que olhava para a sua mão como uma revelação já esquecida, arrepiava-se.
O seu polegar era mínimo. Feio. Movimentava-se com uma disciplina autónoma, como se a consciência morasse ali. Lembrou-se daquela cantaroleta da falange, falanginha, falangeta. Coisa de médico, mnemónica, pois.
A unha encrostava-se numa cabeça larga, semelhante à sua glande, com o prepúcio delgado. Logo a seguir à articulação, um curto troço reduzia a falanginha. A falange enterrava-se no gomo muscular da mão. Olhava para o seu polegar e arrepiava-se.
Crescera não um dedo comum mas sim um pénis atrofiado e balbuciante. Para seu desespero, trazia cravada na mão a sua identidade masculina. Não existia intimidade. Ele era um corpo nu, apesar de vestido.
Olhou mais uma vez e chorou a exposição erecta da sua impaciência. Ao mesmo tempo, o polegar regurgitou e sorriu-lhe, sarcasticamente.

e.e.

quinta-feira, maio 20, 2004

Nova Esquizofrenia Contemporânea - LINGUISTAS

Imaginem que dividisse a palavra amor em morfemas. A cada um lhes daria novas significações. Reparem como a palavra já irremediavelmente gasta morre e renasce como um signo puramente fechado num mundo paralelo. Um morto vivo linguístico. Ao morfema r corresponderá vos, ao morfema o um hífen. Digo que ao morfema restante corresponderá a forma verbal flexionada fodei. Não, queiram desculpar, senhores, mas não há motivo para ofensas nem há causa para qualquer alarme. É algo de meramente linguístico. Sentai-vos linguisticamente, por Saussure!, e reparem como faço dançar esse novo aborto semântico: amor amor amor amor. O mesmo seria dizer-se: fodei-vos fodei-vos fodei-vos fodei-vos. Interessante, não? É um pequeno novo facto de linguagem. Muito pequenino, concedo-vos. Mas talvez as maiores revoluções nunca sejam muito grandes, meus senhores.

(...)
Amor [Fodei-vos], [inserir o nome da pessoa amada]!
É amor [fodei-vos] o que vos digo em mui grã coita minha!
Pois que amor [fodei-vos] é sentimento fidalgo!
Eu, sôfrego, que vos canto – amor [fodei-vos]!
(...)

(variante de protótipo de Cancioneiro do séc. XIV - fragmento)


Reparem como a tradição se rescreve metalinguisticamente. Uma palavra moribunda arrastada pelos séculos fora pode sempre renascer, como a fénix imemorial.

Meus senhores, e se eu dissesse que a palavra morte significa cabrões? Imaginem os efeitos retroactivos. Pensem agora em todo o Romantismo Europeu, em todo aquele sofrimento inútil – como se torna em algo dinâmico. Não se trata meramente de manipular os mortos pela História fora, não é esse o caso. Não. É antes chamar-lhes de cabrões.

Concordo com os senhores, talvez seja simplesmente um terrível mau gosto.

Amor Morte! – Fodei-vos Cabrões!

Mas concordem comigo nisto, por favor: concordem que a língua morreu. Eu próprio desespero em busca daquele sopro próprio e individual com que dissecar solitariamente o meu cérebro. Por vezes, a lentidão dos séculos entranha-se-me talmente que tudo se reduz a um único grito pelo meio da poeira. Pelas veredas mais recônditas, parte do meu ser grunhe – mas a tradição é maquinal, não se impressiona com casinhotas de lama e pés de porco segurando estiletes. Não será com um transplante bovino que se salvará o cérebro do Poeta no novo século.

Fodei-vos Cabrões!

Mau gosto, senhores. Terrível mau gosto.


Bruno Ribeiro de Almeida

terça-feira, maio 18, 2004

Teatro Infantil - Um Dia na Vida de uma Criança

Teatro Ibérico, Rua de Xabregas, 5, Lisboa
com: Céu Neves, Dulce Marques, Joana Lourenço, Rita Santos, Sérgio Velhinho, André Almeida
Maio: sábados e domingos às 11,00 horas

Reservas: 218682531 / 218128528
ditirambus@netcabo.pt
http://www.ditirambus.com

Pedro Sousa

quinta-feira, maio 13, 2004

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais


Alberto Caeiro in I, O Guardador de Rebanhos
Convidam-se todos os restos de pensamento e encéfalos perdidos nos jaguares da velocidade trincada a participar nesta coisa denominada de blog, vulgo ocasional de esquizofrénicos.

quarta-feira, maio 05, 2004

2º Festival de Música

Escola Superior de Música de Lisboa
Teatro Municipal de São Luiz

Caros amigos e colegas,
Nos próximos dias 3 a 9 de Maio, no Jardim de Inverno do Teatro Municipal de São Luiz, numa iniciativa dos alunos da Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), ira decorrer o 2: Festival de Música da ESML. A entrada é gratuita.
Uma verdadeira maratona de música clássica!
Mais de 60 peças ao longo de 20 concertos.
Britten, Bernstein, Leo Brower, Hindemith, Stravinski, Ravel, Ligeti, Eurico Carrapatoso, Vitorino d'Almeida, entre tantos outros!
Com especial destaque para algumas das várias peças em estreia absoluta:

Lampoons - Prof. Christopher Bochmann
Pelos Campos Fora - Suite Campestre - Prof. Sérgio Azevedo
Três Miniaturas - Luís Cardoso*
*(Luís Cardoso foi vencedor do prémio ESMAE/ Casa da Música/ Remix em 2003)

e ainda um dia dedicado à Música Antiga, (no Centro de Estudos Judiciários em Lisboa) onde se incluirão peças de Carlos Seixas, no âmbito do tricentenário do seu nascimento.

No dia 5 de Maio, 4ªfeira, Dia da Escola Superior de Música de Lisboa, está ainda prevista uma homenagem à pianista Olga Prats, directora artística deste festival.

PROGRAMAÇÃO DETALHADA EM:
http://www.esm.ipl.pt/Activ/festivalESML2004.htm

Neste festival actuarão alunos desta instituição, desde o 1º ao 4º ano, das classes de instrumento e coro de câmara e ainda um grupo de convidados especiais vindos de Leipzig. Além do vasto repertório, poderemos ainda escutar diversas obras de alunos e professores do curso de composição.

Uma oportunidade para conhecer o que nos promete esta nova geração de músicos.
Os alunos da ESML gostariam de poder contar convosco na divulgação deste evento. A entrada é gratuita! Apareça também!

Obrigado.

Pedro Sousa