terça-feira, abril 27, 2004

Portugal! ó Portugal...

-Ultimatum de Almada Negreiros e Álvaro de Campos!
-E depois?
-25 de Abril de 1974!
-E depois?
-Comemoração ano após ano da Revolução!
-E depois?
-30 anos pós-Revolução... ou seja, 25 de Abril de 2004!
-E agora?
-Agora? O Agora é sempre o mesmo...

quarta-feira, abril 21, 2004

Asilo

naquele Asilo de mármore e baba fria
a Morte entrou de passos apressados
sorvendo almas
berraram os maus mas em vão
os ombros
varas pontiagudas alinhadas ao Céu
ventilavam ondulantes
as orelhas cerradas de cera vivida
as têmporas
a testa
os nervos
balas rebentando de solidão
olhavam lancinantes
como guilhotinas de músculos dissecados
o raciocínio era pura irritação
e para todos
a Vida
chegava numa ambulância
mascarada de carro funerário
toda esta ferida era evasão
os tiros das espingardas
sobrevoavam a sala dos rumores
cadeiras de roda empilhadas em silêncio
e enfermeiras formosas
cuspindo descontracção
e para todos
as clarabóias que fendiam
o solo seco do cérebro comum
eram miragem de um deserto moribundo
guilhotinas
varas
e ventiladores
têmporas
testas de ranho
e nervos de cera
cheirando ao podre
ao esqueleto do caixão
a festa da Vida era a cólera da Morte
almofadas e pantufas
por muito que boas
eram apenas Nadas
naquele Asilo de mármore e baba fria
o único calor vinha das mãos apertadas

in hóspede

Álvaro Seiça Neves

segunda-feira, abril 19, 2004

Ascensão

De turbinas entrecortadas
volteando água e fogo
renasce o ser.
Ouve o marulhar das nocturnas
ondas
e, espesso,
a ascender,
atiça a dura labareda
universal
na gigante fornalha
de combustão astral.

in hóspede

Álvaro Seiça Neves

sexta-feira, abril 16, 2004

Sente-me, Ouve-me, Vê-me


papel?
papel amachucado
ama?
o choque?
ou ama, chocado?
risca
risca
riscadores
ouvido sábio!
falta-te um pouco de retina
e algo mais de olho!
ouvido amachucado
tesoura
corta
risca
risca
CARVÃO
linha sábia
papel
fruição
agitação
ruído
e atrito
risca
risca
rasga
um zip zip de água canalizada
tesoura
papel
som amachucado
fruição
fricção
atrito
água zip zip
rés rés
fum pa fum
zum zum
zip zip
desejo final
tesoura
corte
risco
zum zum
toque amachucado
Ouve-me
Vê-me
Sente-me


Álvaro Seiça Neves

(A partir de
Sermos – um Desenho Habitado,
Helena Almeida, 1979.)
Pés no chão, Cabeça no Céu

Ando em círculos;
os ciclos voltam.
O trabalho nunca está
completo, tem que se voltar
a fazer. O que me interessa
é sempre o mesmo:
o espaço, a casa, o tecto,
o canto, o chão; depois
o espaço físico de tela,
mas o que eu quero é tratar
emoções. São maneiras
de contar uma história.


Helena Almeida, Seduzir

quarta-feira, abril 14, 2004

O suicída que cometeu parricídio

(…)
- Vejo pela tua cara que já decidiste. Para que me vens pedir opinião?
Wolfgang não responde. Está de pé, a olhar pela janela. Lá fora, o céu cinzento ameaça descarregar as suas mágoas. Não há movimento na rua. As casas vizinhas estão adormecidas, como se toda a cidade estivesse hibernando, embalada pelos primeiros dias do rude Inverno austríaco. Apenas a pequena sala parece estar ciente da sua existência.
- Ainda não decidi – responde, sem desviar o olhar.
- Mas vais fazê-lo.
- E porque não? – Irritado, Wolfgang fixa os olhos do seu pai. – Julgas que eu quero? Achas que é por minha vontade ou por teimosia? Peço-te; dá-me apenas um motivo e eu juro que desisto. Só preciso de uma palavra tua que justifique a tua posição, e eu renuncio a todas as minhas pretensões.
Leopold suspira. Esfrega as suas mãos pela cara, passando pelo queixo, subindo arduamente até aos olhos e regressando rente ao nariz. Lentamente, ergue-se da sua cadeira. Dirige-se a um velho armário, ficando com uma atitude contemplativa à sua frente, de mãos cruzadas atrás das costas. Wolfgang aproxima-se por trás do pai e assume a mesma pose. Finalmente, Leopold quebra o silêncio:
- Abre o armário.
Wolfgang obedece. Ao abri-lo, todo ele geme, como que manifestando o seu desagrado por perturbarem o seu sono secular. Wolfgang dá o passo atrás, oferecendo espaço ao seu pai. Leopold retira uma caixa de sapatos que se encontra por baixo de um casaco bafiento. Abre-a e passa-a para as mãos do seu filho.
- Não és uma criança. Faz o que achas que tens de fazer.
Wolfgang tem uma expressão carregada, mas acena em acordo. Beija o pai e retira-se da sala. Leopold vê-o a fechar a porta. Enquanto se dirige de novo para a sua cadeira, ouve os passos de Wolfgang a subir as escadas. Senta-se, cansado e derrotado, sentindo o seu filho no quarto que se situa por cima. Mas ao fechar os olhos, já não ouve o tiro que Wolfgang dispara contra a sua cabeça, nem o grito de Anna Maria. Também não se apercebe da agitação que se criou no andar de cima, quando todos descobrem o corpo do jovem Wolfgang. E não vê a sua mulher a entrar pela sala, esbaforida e lavada em lágrimas, gritando:
- Está morto!


Cristóvão Figueiredo